Os Ratos
Carta aos homens do futuro, se ainda existirem.
Saudações, espero sinceramente serem essas linhas lidas por alguém dos distantes anos vindouros.
Saudações, espero sinceramente serem essas linhas lidas por alguém dos distantes anos vindouros.
Escrevo para narrar a vocês um pouco de nossa história, na verdade o
pior momento da história da humanidade.
Antes de começar gostaria de me apresentar, darei a vocês apenas a
primeira parte de minha alcunha: Willians, uma homenagem a um grande mestre da
escrita cujas obras, como tudo mais produzido pela engenhosidade humana, estão
perdidas para sempre.
Eu, assim como os outros de minha época, era um homem sem grandes
preocupações ou ambições, tinha algo que chamávamos de “emprego” e também algo
que prezava muito chamado “família”. Vivia em uma terra verde e
maravilhosa, em tudo abençoada pela natureza, um grande aglomerado humano
conhecido como “cidade” era meu lar, sim, era uma bela cidade e lá viviam todos
os que eu um dia conheci e amei. Minha vida era simples e com a dose certa de
felicidade e incertezas que uma vida humana pode ter, nunca me preocupei com as
grandes questões da humanidade, aquelas perguntas feitas por gerações: de onde
viemos? Para onde vamos? Qual o sentido da vida? Estamos sozinhos no Universo?
As três primeiras perguntas permanecem incógnitas esperando uma
resposta, mas a quarta não, a quarta já sabemos a resposta e ela é: não, não
estamos sozinhos no Universo.
Não sei quantos seres e quantas civilizações vivem lá entre a infinidade
de estrelas no céu, sei apenas que uma dessas civilizações nos encontrou e
cruzou anos-luz de distância até nos alcançar. Ainda me lembro do dia de sua
chegada, milhões de estranhas formas metálicas entre as nuvens, bilhões de
pessoas estarrecidas no mundo todo a olhar admiradas para o céu. Todas as
pessoas na terra se viram de repente diante de uma grande verdade: éramos seres
insignificantes diante da grandeza do cosmo.
Por dias as naves dos visitantes ficaram a espreita, como se esperando o
momento certo para alguma coisa. Os governos se mobilizaram, tentaram formas de
comunicação, todas infrutíferas. No mundo todo as pessoas se viam entre o
espanto e a loucura, o caos começava a dominar tudo, alguns alertavam para o
fim do mundo, saques tornaram-se frequentes, crimes foram cometidos, leis
marciais e estados de sítio foram impostos. Exércitos espalhados globo afora se
mobilizavam para conter populações enlouquecidas e se posicionar a uma possível
ameaça trazida pelos seres do espaço, contrapondo-se a isso muitas pessoas
juntavam-se a movimentos cada vez mais numerosos daqueles que pregavam a paz e
a redenção mundial, para eles os visitantes chegavam das estrelas trazendo uma
mensagem de paz, amor e esperança, supunham que a humanidade finalmente fora
escolhida para se juntar a uma gigantesca aliança interplanetária.
Já as pessoas comuns como eu não deixavam de sentir medo, pela primeira
vez as grandes questões tornavam-se importantes em nossas vidas. Aquele
acontecimento sem precedentes paralisava nossas rotinas, nos sentíamos
ameaçados por algo maior do que o risco de uma doença ou a perda de um emprego.
Muitos de nós caíram em melancolia e embotamento enquanto outros tentavam
continuar com suas vidas a despeito da estranha presença alienígena. Eu me
situava no segundo grupo e com o passar dos dias, semanas e meses, esse grupo
foi crescendo. As pessoas aos poucos se acostumaram com aqueles objetos
flutuando sobre suas cabeças e foram voltando as suas rotinas normais, o caos
antes reinante no mundo foi dando lugar a certa tranquilidade apesar do clima
tenso lembrado pelos tanques e soldados nas ruas. É engraçado o ser humano,
disposto a se habituar a tudo, até mesmo ao impensável.
Porém esse foi nosso erro.
Aconteceu exatos cento e vinte dias depois de sua primeira aparição.
Eles não tiveram pena de nós. Talvez nem conhecessem essa palavra.
Uma primeira notícia na internet: “as naves estão descendo!”
Depois disso não havia mais internet.
Seguiu-se a TV: “muitas cidades estão sendo atacadas...”
Sinal interrompido. Não existiam mais redes de televisão.
Por algum tempo ficamos ainda com o longevo rádio: “as notícias são
reais, eles estão atacando em todo o mundo, os exércitos não conseguem
para-los. Meu Deus, tudo aqui está tremendo! Se alguém pode me ouvir se proteja
e que Deus nos ajude...”
Depois disso só estática.
Não estava em casa quando tudo aconteceu, estava em meu carro, um antigo
veículo terrestre, seguia para minha cidade e vi o que não queria ver. Um
grande clarão laranja iluminou o dia ofuscando o próprio Sol, um vento quente e
seco varreu tudo e quase tirou meu carro do chão. Em um segundo minha cidade
estava lá, no segundo seguinte tudo que construí em minha vida tinha se
acabado.
Desses momentos decisivos para nossa espécie lembro apenas de sair
aturdido do carro e me juntar a outros sobreviventes na estrada, todos
atordoados como eu, todos com os corações rasgados por terem perdido alguém.
Mas aquilo era somente o início das dores.
Aqui e ali sobreviventes se juntaram. Vagamos por cidades arrasadas
enquanto uma tempestade sem fim caia dos céus, não era possível encontrar
nenhuma construção humana de pé, os exércitos designados para nos proteger
foram eliminados em questão de minutos. E por três dias e três noites a
destruição continuou, a atmosfera brilhava, rugia e tremia com o vai e vem das
naves cuspindo fogo tal uma revoada de dragões.
Mas enfim eles cessaram.
O mundo depois disso era quase um deserto. Onde um dia reinou o verde
agora apenas o ocre da terra dominava. Quase não havia sinal de vida, quase não
havia sinal de alimento.
Então veio a segunda investida. Nossos invasores finalmente se revelaram.
As naves pousaram. Os desgraçados como eu, sobreviventes de toda aquela
loucura, puderam ver então os seres poderosos que nos dominaram tão facilmente,
eles eram grandes, três a quatro metros de altura, eram bizarros aos nossos
olhos, pele úmida, cabeça desproporcional, olhos pequenos, protuberâncias
espalhadas pelo corpo, pernas articuladas e tentáculos musculosos, não eram
muito diferentes dos vários monstros do espaço dos gibis de minha infância.
Gibis, talvez no futuro essa palavra não faça sentido algum.
Por algum tempo tentamos ficar escondidos. Mas vez ou outra eles nos
notavam, aí aconteciam duas coisas, ou eles nos ignoravam totalmente ou eles
nos eliminavam da pior maneira possível. Por isso a maioria dos sobreviventes
mantinha distância dos invasores na esperança que eles nos deixassem em paz.
O grande problema é que simplesmente não havia para onde ir, eles
estavam se estabelecendo em toda parte. E havia o grande problema do alimento,
toda vida animal ou vegetal parecia estar sendo aniquilada, não havia quase
nada para comer, e acho que nada torna o homem tão desesperado quando a falta
de alimento.
Assim, indiferentes aos grandes seres que conquistaram nosso mundo, os
homens que restaram se puseram a travar a última de suas guerras, lutavam uns
contra os outros por comida. Nesses dias negros vi coisas tenebrosas, vi homens
matarem homens, vi homens comerem cadáveres, vi homens devorando outros homens
ainda com vida. Neste caos só havia uma regra: matar ou ser morto. O ser humano
havia regredido ao estado de bestialidade.
E os alienígenas sem se importar com nossas tentativas desesperadas de
sobreviver continuavam a tomar e a modificar todos os espaços, alteravam tudo
em escala gigantesca, levantavam cidades tão grandes que faziam de nossas
antigas metrópoles simples montagens de Lego (lego era um antigo jogo de montar
muito popular em meu tempo). Os pequenos grupos de seres humanos errantes
tentavam se esconder em meio aquelas construções, simplesmente não havia outro
lugar. Foi quando no desespero da fome ousamos mais e atacávamos nossos
invasores, na maioria das vezes éramos eliminados como moscas, outras vezes
causávamos baixas e levamos pedaços daquelas criaturas para as profundezas do
subsolo onde eles não podiam nos encontrar e lá devorávamos suas partes. Muitos
de nós não se adaptaram a nova dieta e pagaram por isso, estão todos mortos
agora, é a lei da natureza, ou você se adapta ou você morre.
Com o tempo descobrimos que podíamos nos alimentar também dos restos
produzidos por aqueles demônios do espaço e percorríamos suas construções em
busca de alimento, nos escondíamos nos espaços e fendas abaixo de suas cidades,
muitas vezes ruínas de nossas próprias construções, agora somente buracos escuros
e sem vida. Inseridos nessa nova realidade nos tornamos mais organizados,
paramos de brigar entre nós e nos concentramos em traçar estratégias para
roubar víveres dos alienígenas, muitas vezes conseguíamos atacar até mesmo
algumas daquelas criaturas, captura-las e devora-las. Para aqueles seres nós
éramos um pesadelo, vagávamos no subsolo daquele novo mundo e saíamos à noite,
escolhendo os locais mais escuros para revirar suas lixeiras e requisitar seus
corpos como alimento. Aqueles olhos pequenos não eram à toa, eles enxergavam
mal a noite e aí nós tínhamos uma vantagem.
Mas aquelas criaturas reagiram a essa última tentativa de sobrevivência.
Confrontamo-nos com todo tipo de artimanha: venenos, armadilhas e o ataque de
criaturas abomináveis que nós simplesmente chamávamos de feras. As feras eram
seres menores, do tamanho de um homem, se esgueiravam nos subterrâneos como
lacraias, a única coisa que podíamos fazer era fugir, se ela pegasse um de nós
sozinho não havia mais esperança.
Entretanto saibam que mesmo com todo esse sofrimento nós persistimos.
Nunca nos demos por vencidos. Se você é um ser humano e pode ler essas palavras
gravadas na rocha em um passado longínquo aqui nas entranhas da Terra significa
que nossa dor não foi em vão. Escrevo isso utilizando apenas dois dedos da mão
direita, os outros eu perdi no encontro com uma fera, assim como um de meus
olhos, sou um ser mutilado, mas nesse momento outro ser acabou de nascer, meu
filho, o rebento de meu encontro com uma nova companheira que sobreviveu a
tragédia. Só por isso ainda tenho esperança no futuro, nós ainda sobrevivemos e
nos reproduzimos nos buracos escuros de esgotos alienígenas.
É irônico, por muitos anos a humanidade lutou com seu maior inimigo, um
ser que vivia em esgotos e em buracos escuros se revelando só a noite para se
alimentar de nossos restos tal como nós fazemos agora com nossos oponentes, por
mais que tentássemos nunca conseguimos elimina-los. Hoje compreendo mais esses
pequenos seres e respeito sua incrível capacidade de sobrevivência, pois hoje
para sobreviver somos mais do que homens, hoje nós somos os ratos.
Então sejam vocês homens ou ratos espero apenas serem frutos desse
planeta assim como eu. E peço também que se lembrem de nós ao formularem outra
daquelas grandes perguntas, talvez pelo menos uma, “de onde viemos”, possa ser
parcialmente respondida depois dessas palavras.
Desejo a vocês a sorte e a paz que não tivemos.
Ass.:
Willians S.
Dia 03 de Maio do Décimo Primeiro Ano depois da grande invasão.
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