sábado, 9 de março de 2013


Os Ratos



Carta aos homens do futuro, se ainda existirem.

Saudações, espero sinceramente serem essas linhas lidas por alguém dos distantes anos vindouros.
Escrevo para narrar a vocês um pouco de nossa história, na verdade o pior momento da história da humanidade.
Antes de começar gostaria de me apresentar, darei a vocês apenas a primeira parte de minha alcunha: Willians, uma homenagem a um grande mestre da escrita cujas obras, como tudo mais produzido pela engenhosidade humana, estão perdidas para sempre.

Eu, assim como os outros de minha época, era um homem sem grandes preocupações ou ambições, tinha algo que chamávamos de “emprego” e também algo que prezava muito chamado “família”.  Vivia em uma terra verde e maravilhosa, em tudo abençoada pela natureza, um grande aglomerado humano conhecido como “cidade” era meu lar, sim, era uma bela cidade e lá viviam todos os que eu um dia conheci e amei. Minha vida era simples e com a dose certa de felicidade e incertezas que uma vida humana pode ter, nunca me preocupei com as grandes questões da humanidade, aquelas perguntas feitas por gerações: de onde viemos? Para onde vamos? Qual o sentido da vida? Estamos sozinhos no Universo?
As três primeiras perguntas permanecem incógnitas esperando uma resposta, mas a quarta não, a quarta já sabemos a resposta e ela é: não, não estamos sozinhos no Universo.
Não sei quantos seres e quantas civilizações vivem lá entre a infinidade de estrelas no céu, sei apenas que uma dessas civilizações nos encontrou e cruzou anos-luz de distância até nos alcançar. Ainda me lembro do dia de sua chegada, milhões de estranhas formas metálicas entre as nuvens, bilhões de pessoas estarrecidas no mundo todo a olhar admiradas para o céu. Todas as pessoas na terra se viram de repente diante de uma grande verdade: éramos seres insignificantes diante da grandeza do cosmo.
Por dias as naves dos visitantes ficaram a espreita, como se esperando o momento certo para alguma coisa. Os governos se mobilizaram, tentaram formas de comunicação, todas infrutíferas. No mundo todo as pessoas se viam entre o espanto e a loucura, o caos começava a dominar tudo, alguns alertavam para o fim do mundo, saques tornaram-se frequentes, crimes foram cometidos, leis marciais e estados de sítio foram impostos. Exércitos espalhados globo afora se mobilizavam para conter populações enlouquecidas e se posicionar a uma possível ameaça trazida pelos seres do espaço, contrapondo-se a isso muitas pessoas juntavam-se a movimentos cada vez mais numerosos daqueles que pregavam a paz e a redenção mundial, para eles os visitantes chegavam das estrelas trazendo uma mensagem de paz, amor e esperança, supunham que a humanidade finalmente fora escolhida para se juntar a uma gigantesca aliança interplanetária.
Já as pessoas comuns como eu não deixavam de sentir medo, pela primeira vez as grandes questões tornavam-se importantes em nossas vidas. Aquele acontecimento sem precedentes paralisava nossas rotinas, nos sentíamos ameaçados por algo maior do que o risco de uma doença ou a perda de um emprego. Muitos de nós caíram em melancolia e embotamento enquanto outros tentavam continuar com suas vidas a despeito da estranha presença alienígena. Eu me situava no segundo grupo e com o passar dos dias, semanas e meses, esse grupo foi crescendo. As pessoas aos poucos se acostumaram com aqueles objetos flutuando sobre suas cabeças e foram voltando as suas rotinas normais, o caos antes reinante no mundo foi dando lugar a certa tranquilidade apesar do clima tenso lembrado pelos tanques e soldados nas ruas. É engraçado o ser humano, disposto a se habituar a tudo, até mesmo ao impensável.
Porém esse foi nosso erro.
Aconteceu exatos cento e vinte dias depois de sua primeira aparição.
Eles não tiveram pena de nós. Talvez nem conhecessem essa palavra.
Uma primeira notícia na internet: “as naves estão descendo!”
Depois disso não havia mais internet.
Seguiu-se a TV: “muitas cidades estão sendo atacadas...”
Sinal interrompido. Não existiam mais redes de televisão.
Por algum tempo ficamos ainda com o longevo rádio: “as notícias são reais, eles estão atacando em todo o mundo, os exércitos não conseguem para-los. Meu Deus, tudo aqui está tremendo! Se alguém pode me ouvir se proteja e que Deus nos ajude...”
Depois disso só estática.
Não estava em casa quando tudo aconteceu, estava em meu carro, um antigo veículo terrestre, seguia para minha cidade e vi o que não queria ver. Um grande clarão laranja iluminou o dia ofuscando o próprio Sol, um vento quente e seco varreu tudo e quase tirou meu carro do chão. Em um segundo minha cidade estava lá, no segundo seguinte tudo que construí em minha vida tinha se acabado.
Desses momentos decisivos para nossa espécie lembro apenas de sair aturdido do carro e me juntar a outros sobreviventes na estrada, todos atordoados como eu, todos com os corações rasgados por terem perdido alguém. Mas aquilo era somente o início das dores.
Aqui e ali sobreviventes se juntaram. Vagamos por cidades arrasadas enquanto uma tempestade sem fim caia dos céus, não era possível encontrar nenhuma construção humana de pé, os exércitos designados para nos proteger foram eliminados em questão de minutos. E por três dias e três noites a destruição continuou, a atmosfera brilhava, rugia e tremia com o vai e vem das naves cuspindo fogo tal uma revoada de dragões.
Mas enfim eles cessaram.
O mundo depois disso era quase um deserto. Onde um dia reinou o verde agora apenas o ocre da terra dominava. Quase não havia sinal de vida, quase não havia sinal de alimento.
Então veio a segunda investida. Nossos invasores finalmente se revelaram. As naves pousaram. Os desgraçados como eu, sobreviventes de toda aquela loucura, puderam ver então os seres poderosos que nos dominaram tão facilmente, eles eram grandes, três a quatro metros de altura, eram bizarros aos nossos olhos, pele úmida, cabeça desproporcional, olhos pequenos, protuberâncias espalhadas pelo corpo, pernas articuladas e tentáculos musculosos, não eram muito diferentes dos vários monstros do espaço dos gibis de minha infância. Gibis, talvez no futuro essa palavra não faça sentido algum.
Por algum tempo tentamos ficar escondidos. Mas vez ou outra eles nos notavam, aí aconteciam duas coisas, ou eles nos ignoravam totalmente ou eles nos eliminavam da pior maneira possível. Por isso a maioria dos sobreviventes mantinha distância dos invasores na esperança que eles nos deixassem em paz.
O grande problema é que simplesmente não havia para onde ir, eles estavam se estabelecendo em toda parte. E havia o grande problema do alimento, toda vida animal ou vegetal parecia estar sendo aniquilada, não havia quase nada para comer, e acho que nada torna o homem tão desesperado quando a falta de alimento.
Assim, indiferentes aos grandes seres que conquistaram nosso mundo, os homens que restaram se puseram a travar a última de suas guerras, lutavam uns contra os outros por comida. Nesses dias negros vi coisas tenebrosas, vi homens matarem homens, vi homens comerem cadáveres, vi homens devorando outros homens ainda com vida. Neste caos só havia uma regra: matar ou ser morto. O ser humano havia regredido ao estado de bestialidade.
E os alienígenas sem se importar com nossas tentativas desesperadas de sobreviver continuavam a tomar e a modificar todos os espaços, alteravam tudo em escala gigantesca, levantavam cidades tão grandes que faziam de nossas antigas metrópoles simples montagens de Lego (lego era um antigo jogo de montar muito popular em meu tempo). Os pequenos grupos de seres humanos errantes tentavam se esconder em meio aquelas construções, simplesmente não havia outro lugar. Foi quando no desespero da fome ousamos mais e atacávamos nossos invasores, na maioria das vezes éramos eliminados como moscas, outras vezes causávamos baixas e levamos pedaços daquelas criaturas para as profundezas do subsolo onde eles não podiam nos encontrar e lá devorávamos suas partes. Muitos de nós não se adaptaram a nova dieta e pagaram por isso, estão todos mortos agora, é a lei da natureza, ou você se adapta ou você morre.
Com o tempo descobrimos que podíamos nos alimentar também dos restos produzidos por aqueles demônios do espaço e percorríamos suas construções em busca de alimento, nos escondíamos nos espaços e fendas abaixo de suas cidades, muitas vezes ruínas de nossas próprias construções, agora somente buracos escuros e sem vida. Inseridos nessa nova realidade nos tornamos mais organizados, paramos de brigar entre nós e nos concentramos em traçar estratégias para roubar víveres dos alienígenas, muitas vezes conseguíamos atacar até mesmo algumas daquelas criaturas, captura-las e devora-las. Para aqueles seres nós éramos um pesadelo, vagávamos no subsolo daquele novo mundo e saíamos à noite, escolhendo os locais mais escuros para revirar suas lixeiras e requisitar seus corpos como alimento. Aqueles olhos pequenos não eram à toa, eles enxergavam mal a noite e aí nós tínhamos uma vantagem.
Mas aquelas criaturas reagiram a essa última tentativa de sobrevivência. Confrontamo-nos com todo tipo de artimanha: venenos, armadilhas e o ataque de criaturas abomináveis que nós simplesmente chamávamos de feras. As feras eram seres menores, do tamanho de um homem, se esgueiravam nos subterrâneos como lacraias, a única coisa que podíamos fazer era fugir, se ela pegasse um de nós sozinho não havia mais esperança.
Entretanto saibam que mesmo com todo esse sofrimento nós persistimos. Nunca nos demos por vencidos. Se você é um ser humano e pode ler essas palavras gravadas na rocha em um passado longínquo aqui nas entranhas da Terra significa que nossa dor não foi em vão. Escrevo isso utilizando apenas dois dedos da mão direita, os outros eu perdi no encontro com uma fera, assim como um de meus olhos, sou um ser mutilado, mas nesse momento outro ser acabou de nascer, meu filho, o rebento de meu encontro com uma nova companheira que sobreviveu a tragédia. Só por isso ainda tenho esperança no futuro, nós ainda sobrevivemos e nos reproduzimos nos buracos escuros de esgotos alienígenas.
É irônico, por muitos anos a humanidade lutou com seu maior inimigo, um ser que vivia em esgotos e em buracos escuros se revelando só a noite para se alimentar de nossos restos tal como nós fazemos agora com nossos oponentes, por mais que tentássemos nunca conseguimos elimina-los. Hoje compreendo mais esses pequenos seres e respeito sua incrível capacidade de sobrevivência, pois hoje para sobreviver somos mais do que homens, hoje nós somos os ratos.
Então sejam vocês homens ou ratos espero apenas serem frutos desse planeta assim como eu. E peço também que se lembrem de nós ao formularem outra daquelas grandes perguntas, talvez pelo menos uma, “de onde viemos”, possa ser parcialmente respondida depois dessas palavras.

Desejo a vocês a sorte e a paz que não tivemos.


Ass.:
Willians S.

Dia 03 de Maio do Décimo Primeiro Ano depois da grande invasão.


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