A música tocou, e
depois da música apenas um grito. Eu a olhei uma última vez, mas nada mais
podia fazer, seus olhos já estavam totalmente brancos, já não era mais ela.
Infelizmente aquela foi a última imagem que guardo dela e aquele grito horrível
o último som que ouvi de sua boca.
Não podia ficar ali e
continuei a correr e de mãos dadas comigo ia minha filha adolescente, chorosa e
desesperada por presenciar a perda da mãe. Talvez fosse o momento de um pai
parar e tentar consolar a filha, mas não agora, precisávamos correr,
precisávamos fugir.
Enquanto corria
olhava em volta, lá estava a cidade onde nasci, cresci, trabalhei e criei minha
família. Agora era um mar de prédios fantasmas, suas ruas estavam coalhadas de
carros abandonados. E por toda parte estavam elas, as pessoas, mas não eram
como antes. Todas as pessoas daquela cidade permaneciam de pé sem sair do
lugar, todos apresentavam o mesmo semblante de apatia e os mesmo olhar, olhares
brancos, onde se via apenas suas escleróticas. Eram os olhares daqueles que
perderam o que de mais precioso havia em suas vidas: suas almas.
- Pai, não aguento
mais correr! – disse minha filha.
Eu olhei para ela,
por um momento tive pena, mas não podia ceder.
- Não Carine, não
podemos parar! Você não viu? Nos descobriram, virão atrás de nós.
Eu arrastei minha
mocinha, frio e indiferente a seu choro, e a poucos metros nós os vimos:
- Veja papai – minha
filha falou primeiro – sobreviventes!
Eles acenaram para
nós, eram três pessoas, duas mulheres e um velho. Seguimos ao encontro deles.
Uma das mulheres se
adiantou e disse:
- Estão indo na
direção errada, eles nos alcançaram e vem atrás de nós.
- Não podemos voltar,
eles também estão na direção de onde viemos – respondi.
Nós cinco paramos e
tentamos decidir para onde fugir, mas já era tarde. Ouvimos a música, aquela
música linda e triste que trazia oculta um grande mal.
- São eles papai! –
gritou Carine apavorada.
Tentamos correr na
direção contrária de onde a música provinha. Infelizmente para dois de nós isso
não era mais possível. Vi uma das mulheres e o velho pararem o olharem na
direção da música, estavam enfeitiçados por ela e por isso acharam seu fim.
Dois gritos horríveis e agudos foram ouvidos, ainda me virei a tempo de ver
quando suas almas se desprendiam dos corpos, dois espectros que subiam como
névoa, ainda exibindo a expressão de pânico dos corpos que habitaram. Mas
aquela expressão era efêmera, logo a névoa dissipou-se e perdeu-se da mesma
forma que o eco do grito daqueles dois condenados.
Eu e Carine
continuamos a correr, a mulher que nos seguia chorava e praguejava:
- Desgraçados!
Desgraçados! – gritava ela.
A música continuava
forte e irresistível. Senti a mão de Carine se soltar.
- Carine! Não! –
gritei um grito inútil, minha filha já era surda a tudo que não fosse aquela
música infernal.
Eu tentei agarra-la e
a puxei para junto de mim. Infelizmente era tarde demais.
Carine virou os
olhos, eles agora eram brancos e frios como mármore, sua boca se abriu e ela
gritou. Vi sua alma subir e tentei em vão segura-la entre as mãos, mas seu
rostinho juvenil se desfez como fumaça sobrada pelo vento.
Desesperado me
ajoelhei e chorei copiosamente. A mulher que nos acompanhava ainda tentou
dizer:
- Eles a levaram, mas
nós dois ainda podemos fug... – parou no meio da frase, mais uma vez a música
tocou.
Ouvi seu lamento e vi
sua alma deixar seu corpo, ficando para trás apenas mais um ser humano de pé
com o olhar vazio, mais parecia uma estatua de pedra.
Agora estava sozinho,
o último caminhante em meio a uma multidão de seres petrificados. Decidi não
correr mais, queria ouvir a próxima música, queria deixar tudo para trás.
E a música tocou
novamente, eu me virei em sua direção e então eu os vi, mas minha visão já não
era como antes, senti meus olhos revirarem, uma dor dilacerante tomou conta de
mim e eu gritei como que para me libertar. E realmente me libertei, senti meu
ser se dissolver na atmosfera, cada vez mais rarefeito. Arrisquei mais um olhar
sobre meus atacantes, a visão estava tão turfa, não posso dizer o que eram,
tudo foi se apagando e nada mais restou.
***
Deitado debaixo de um
carro o pequeno Cássio observava tudo preso em seu silêncio. Ele viu o homem
chorar pela menina, viu a mulher perder sua alma e por fim viu o próprio homem
sucumbir e ter seus olhos revirados enquanto sua alma, que ainda tentava manter
uma expressão humana de assombro, se desprendia do corpo e se desfazia no ar
até ser finalmente sugada pelos estranhos seres.
Cássio sentia medo
como toda criança sentiria ao contemplar o inconcebível, mas seu medo agora não
era maior do que o ódio que gritava em seu coração infantil ao ver se repetir
aquele espetáculo que dois dias antes levara toda sua família. Ele teve vontade
de sair correndo e pular naqueles seres e o faria se a mão de Deborah, uma
jovem escondida junto com ele debaixo do veículo, não pousasse em seu ombro.
Ele olhou para ela e a viu desenhar no ar alguns gestos com os dedos:
“Vamos esperar, eles
irão embora.” – era o que ela dizia com aqueles gestos.
O pequeno Cássio em
resposta movimentou braços, mãos e dedos e na mesma linguagem disse:
“Eles não vão parar,
não é? Não vão parar enquanto não levarem todos.”
“Não sei Cássio.” –
disse Deborah em novos gestos.
De repente Cássio
sentiu novamente aquela estranha vibração no solo sob seu corpo e reconheceu
nela, como ecos de uma época distante, os mesmos tons que precediam o fim de
muitas vidas, eram notas musicais, notas que Cássio sabia que só poderiam
pertencer a uma canção. Porém o menino surdo não poderia ir mais fundo do que
isso, apesar de estudar música quando mais novo ele teve seus sonhos de se
tornar músico interrompidos quando uma febre quase levou sua vida. Apesar do
sofrimento sua vida foi preservada, mas o calor da enfermidade tirou dele a
capacidade de ouvir o mundo, Cássio era um deficiente auditivo, mas ao
contrário de Deborah que nasceu surda, ele já ouviu um dia e reconhecia nas
vibrações os tons de uma estranha melodia.
“A música está
tocando de novo.” – disse ele na forma de sinais.
“As pessoas não podem
resistir a ela Cássio.” – respondeu Deborah com sua linguagem muda.
As vibrações
aumentaram e uma grande sombra passou lentamente sobre os dois. Eles olharem
para o alto e viram outro daqueles seres, mais parecia uma grande água-viva do
tamanho de um automóvel, uma medusa de cristal refletindo os raios do sol e
vibrando seus tentáculos enquanto um punhado de seres humanos eram
irresistivelmente atraídos por ela e tinham suas almas sugadas para seu
interior.
Ladrões de almas. Era tudo que
Deborah pensava. Ela leu as notícias de sua chegada, a aparição das estranhas
naves no céu, o boato sobre o fim dos tempos, o medo de uma invasão. As pessoas
discutiam nas ruas sobre o que os visitantes procuravam, seria por água? Por
recursos naturais? Por um novo habitat? Por conquistas?
Não, eles queriam
nossas almas, e estavam conseguindo leva-las.
Deborah ainda
lembrava de dois dias atrás, quando todas as pessoas de sua família saíram de
casa sem dizer nada, mais mudas do que ela, apáticas a tudo, e se entregaram
sem luta aquelas criaturas estranhas deixando para trás corpos frios e
insensíveis como pedra.
Após se alimentarem
de novo os estranhos seres se afastaram, Deborah pegou na mão de Cássio, o
pequeno menino que ela encontrou vagando sozinho na cidade, e saiu de debaixo
do carro.
“Vamos embora.” – ela
disse com as mãos.
Os dois seguiram
entre o aglomerado de desalmados, as únicas duas formas a se movimentar em toda
aquela extensão. Mas de repente Deborah parou em frente a uma daquelas figuras
sem expressão, era um policial. Ela olhou em seus olhos brancos e depois para a
arma em seu cinto.
Não vai precisar mais
disso. Ela pensou e pegou o revólver do guarda sob o olhar ao mesmo tempo
curioso e esperançoso do garoto.
Eles continuaram a
andar em busca de um novo esconderijo, foi aí que perceberam sombras atrás
deles e se viraram. Deram de cara com um grupo de umas dez pessoas quase que
correndo em sua direção. Um dos homens do grupo murmurou alguma coisa, eles não
ouviram, mas puderam interpretar parte do movimento de seus lábios. Ele dizia
alguma coisa sobre estarem gritando por eles há muito tempo e sobre os monstros
estarem voltando.
Deborah e Cássio
apontaram para os ouvidos e fizeram um sinal de negativa e eles entenderam que
eram surdos e nisso um senhor se adiantou e disse usando a linguagem de sinais:
“Fiquem conosco, há
outros como nós escondidos. A música não nos afeta e estamos recolhendo
sobreviventes.”
Mas enquanto
conversavam vários membros do grande grupo de pessoas se viraram e rumaram como
zumbis na direção de uma grande sombra.
Cássio reconheceu a
vibração reverberar novamente e deu o alerta:
“São eles de novo!”
Além de Deborah, de
Cássio e do senhor somente mais três pessoas, dois homens e uma mulher, não
foram atraídos pela música, eram todo surdos.
Eles permaneceram
parados enquanto uma grande medusa de cristal surgiu. As pessoas atraídas por
elas abriram suas bocas e seus gritos de terror seriam ouvidos se não fosse
pela providencial deficiência auditiva, suas almas começaram a subir e encher o
ar como se fossem névoa carregando rostos efêmeros e apavorados antes de serem
dissolvidos e sugados pela criatura.
Todos correram,
Cássio puxou a roupa de Deborah mas está permaneceu impassível e gesticulou
para o menino.
“Não podemos nos
esconder sempre.” – foi o que ela disse levantando a pistola que tomou do
policial e mirando a criatura.
Ela nunca havia dado
um tiro na vida, seria a primeira vez.
Mesmo tremendo ela
fez pontaria e puxou o gatilho. Ela sentiu o tranco da arma, mas não ouviu a
explosão do disparo e nem o brado de desespero e dor emitido pela criatura que
mais uma vez tremeu sues tentáculos, agora de agonia, antes de despencar no
chão e se estilhaçar como vidro.
O que se viu a seguir
foi um espetáculo surreal. Os restos da criatura brilharam tanto a ponto de
doer os olhos, um turbilhão de cores saia de seu interior enquanto vários
espectros sobre a forma de espirais de fumaça deixavam sua carcaça.
Cássio olhou para
tudo aquilo e reconheceu entre os espectros duas faces distorcidas, mas
aparentemente aliviadas, ele não sabia, mas eram Carine e seu pai, agora juntos
e finalmente livres.
Ao mesmo tempo em que
aqueles espíritos cativos conheciam a liberdade os corpos abandonados caiam ao
chão e seus olhos readquiriam o aspecto de antes, porém não refletiam nada além
da ausência de vida. Eles estavam mortos.
Deborah percebeu duas
novas sombras se aproximarem, duas medusas que tentavam desesperadamente
recolher as almas que escapavam. A moça atirou de novo e o mesmo espetáculo se
repetiu, apesar de assustadores aqueles seres eram frágeis e fáceis de matar.
O menino observava
tudo e ria, um sorriso de vitória e vingança. Logo as outros pessoas que
correram reapareceram.
“Podemos vencê-los.
Podemos vencê-los.” – eram o que todos diziam em sua linguagem de sinais.
Deborah e Cássio
seguiram com o grupo. Uma pequena resistência foi formada naquela cidade e no
mundo todo histórias semelhantes eram repetidas. Aqueles que não ouviam a
música tiveram uma chance, mas bilhões foram levados até finalmente os
estranhos invasores terminarem sua pilhagem de almas e abandonarem o planeta,
deixando para trás um mundo de sobreviventes, mas dominado pelo silêncio.
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