terça-feira, 28 de agosto de 2012

A Última Música


A música tocou, e depois da música apenas um grito. Eu a olhei uma última vez, mas nada mais podia fazer, seus olhos já estavam totalmente brancos, já não era mais ela. Infelizmente aquela foi a última imagem que guardo dela e aquele grito horrível o último som que ouvi de sua boca.
Não podia ficar ali e continuei a correr e de mãos dadas comigo ia minha filha adolescente, chorosa e desesperada por presenciar a perda da mãe. Talvez fosse o momento de um pai parar e tentar consolar a filha, mas não agora, precisávamos correr, precisávamos fugir.
Enquanto corria olhava em volta, lá estava a cidade onde nasci, cresci, trabalhei e criei minha família. Agora era um mar de prédios fantasmas, suas ruas estavam coalhadas de carros abandonados. E por toda parte estavam elas, as pessoas, mas não eram como antes. Todas as pessoas daquela cidade permaneciam de pé sem sair do lugar, todos apresentavam o mesmo semblante de apatia e os mesmo olhar, olhares brancos, onde se via apenas suas escleróticas. Eram os olhares daqueles que perderam o que de mais precioso havia em suas vidas: suas almas.
- Pai, não aguento mais correr! – disse minha filha.
Eu olhei para ela, por um momento tive pena, mas não podia ceder.
- Não Carine, não podemos parar! Você não viu? Nos descobriram, virão atrás de nós.
Eu arrastei minha mocinha, frio e indiferente a seu choro, e a poucos metros nós os vimos:
- Veja papai – minha filha falou primeiro – sobreviventes!
Eles acenaram para nós, eram três pessoas, duas mulheres e um velho. Seguimos ao encontro deles.
Uma das mulheres se adiantou e disse:
- Estão indo na direção errada, eles nos alcançaram e vem atrás de nós.
- Não podemos voltar, eles também estão na direção de onde viemos – respondi.
Nós cinco paramos e tentamos decidir para onde fugir, mas já era tarde. Ouvimos a música, aquela música linda e triste que trazia oculta um grande mal.
- São eles papai! – gritou Carine apavorada.
Tentamos correr na direção contrária de onde a música provinha. Infelizmente para dois de nós isso não era mais possível. Vi uma das mulheres e o velho pararem o olharem na direção da música, estavam enfeitiçados por ela e por isso acharam seu fim. Dois gritos horríveis e agudos foram ouvidos, ainda me virei a tempo de ver quando suas almas se desprendiam dos corpos, dois espectros que subiam como névoa, ainda exibindo a expressão de pânico dos corpos que habitaram. Mas aquela expressão era efêmera, logo a névoa dissipou-se e perdeu-se da mesma forma que o eco do grito daqueles dois condenados.
Eu e Carine continuamos a correr, a mulher que nos seguia chorava e praguejava:
- Desgraçados! Desgraçados! – gritava ela.
A música continuava forte e irresistível. Senti a mão de Carine se soltar.
- Carine! Não! – gritei um grito inútil, minha filha já era surda a tudo que não fosse aquela música infernal.
Eu tentei agarra-la e a puxei para junto de mim. Infelizmente era tarde demais.
Carine virou os olhos, eles agora eram brancos e frios como mármore, sua boca se abriu e ela gritou. Vi sua alma subir e tentei em vão segura-la entre as mãos, mas seu rostinho juvenil se desfez como fumaça sobrada pelo vento.
Desesperado me ajoelhei e chorei copiosamente. A mulher que nos acompanhava ainda tentou dizer:
- Eles a levaram, mas nós dois ainda podemos fug... – parou no meio da frase, mais uma vez a música tocou.
Ouvi seu lamento e vi sua alma deixar seu corpo, ficando para trás apenas mais um ser humano de pé com o olhar vazio, mais parecia uma estatua de pedra.
Agora estava sozinho, o último caminhante em meio a uma multidão de seres petrificados. Decidi não correr mais, queria ouvir a próxima música, queria deixar tudo para trás.
E a música tocou novamente, eu me virei em sua direção e então eu os vi, mas minha visão já não era como antes, senti meus olhos revirarem, uma dor dilacerante tomou conta de mim e eu gritei como que para me libertar. E realmente me libertei, senti meu ser se dissolver na atmosfera, cada vez mais rarefeito. Arrisquei mais um olhar sobre meus atacantes, a visão estava tão turfa, não posso dizer o que eram, tudo foi se apagando e nada mais restou.
***
Deitado debaixo de um carro o pequeno Cássio observava tudo preso em seu silêncio. Ele viu o homem chorar pela menina, viu a mulher perder sua alma e por fim viu o próprio homem sucumbir e ter seus olhos revirados enquanto sua alma, que ainda tentava manter uma expressão humana de assombro, se desprendia do corpo e se desfazia no ar até ser finalmente sugada pelos estranhos seres.
Cássio sentia medo como toda criança sentiria ao contemplar o inconcebível, mas seu medo agora não era maior do que o ódio que gritava em seu coração infantil ao ver se repetir aquele espetáculo que dois dias antes levara toda sua família. Ele teve vontade de sair correndo e pular naqueles seres e o faria se a mão de Deborah, uma jovem escondida junto com ele debaixo do veículo, não pousasse em seu ombro. Ele olhou para ela e a viu desenhar no ar alguns gestos com os dedos:
“Vamos esperar, eles irão embora.” – era o que ela dizia com aqueles gestos.
O pequeno Cássio em resposta movimentou braços, mãos e dedos e na mesma linguagem disse:
“Eles não vão parar, não é? Não vão parar enquanto não levarem todos.”
“Não sei Cássio.” – disse Deborah em novos gestos.
De repente Cássio sentiu novamente aquela estranha vibração no solo sob seu corpo e reconheceu nela, como ecos de uma época distante, os mesmos tons que precediam o fim de muitas vidas, eram notas musicais, notas que Cássio sabia que só poderiam pertencer a uma canção. Porém o menino surdo não poderia ir mais fundo do que isso, apesar de estudar música quando mais novo ele teve seus sonhos de se tornar músico interrompidos quando uma febre quase levou sua vida. Apesar do sofrimento sua vida foi preservada, mas o calor da enfermidade tirou dele a capacidade de ouvir o mundo, Cássio era um deficiente auditivo, mas ao contrário de Deborah que nasceu surda, ele já ouviu um dia e reconhecia nas vibrações os tons de uma estranha melodia.
“A música está tocando de novo.” – disse ele na forma de sinais.
“As pessoas não podem resistir a ela Cássio.” – respondeu Deborah com sua linguagem muda.
As vibrações aumentaram e uma grande sombra passou lentamente sobre os dois. Eles olharem para o alto e viram outro daqueles seres, mais parecia uma grande água-viva do tamanho de um automóvel, uma medusa de cristal refletindo os raios do sol e vibrando seus tentáculos enquanto um punhado de seres humanos eram irresistivelmente atraídos por ela e tinham suas almas sugadas para seu interior.
Ladrões de almas. Era tudo que Deborah pensava. Ela leu as notícias de sua chegada, a aparição das estranhas naves no céu, o boato sobre o fim dos tempos, o medo de uma invasão. As pessoas discutiam nas ruas sobre o que os visitantes procuravam, seria por água? Por recursos naturais? Por um novo habitat? Por conquistas?
Não, eles queriam nossas almas, e estavam conseguindo leva-las.
Deborah ainda lembrava de dois dias atrás, quando todas as pessoas de sua família saíram de casa sem dizer nada, mais mudas do que ela, apáticas a tudo, e se entregaram sem luta aquelas criaturas estranhas deixando para trás corpos frios e insensíveis como pedra.
Após se alimentarem de novo os estranhos seres se afastaram, Deborah pegou na mão de Cássio, o pequeno menino que ela encontrou vagando sozinho na cidade, e saiu de debaixo do carro.
“Vamos embora.” – ela disse com as mãos.
Os dois seguiram entre o aglomerado de desalmados, as únicas duas formas a se movimentar em toda aquela extensão. Mas de repente Deborah parou em frente a uma daquelas figuras sem expressão, era um policial. Ela olhou em seus olhos brancos e depois para a arma em seu cinto.
Não vai precisar mais disso. Ela pensou e pegou o revólver do guarda sob o olhar ao mesmo tempo curioso e esperançoso do garoto.
Eles continuaram a andar em busca de um novo esconderijo, foi aí que perceberam sombras atrás deles e se viraram. Deram de cara com um grupo de umas dez pessoas quase que correndo em sua direção. Um dos homens do grupo murmurou alguma coisa, eles não ouviram, mas puderam interpretar parte do movimento de seus lábios. Ele dizia alguma coisa sobre estarem gritando por eles há muito tempo e sobre os monstros estarem voltando.
Deborah e Cássio apontaram para os ouvidos e fizeram um sinal de negativa e eles entenderam que eram surdos e nisso um senhor se adiantou e disse usando a linguagem de sinais:
“Fiquem conosco, há outros como nós escondidos. A música não nos afeta e estamos recolhendo sobreviventes.”
Mas enquanto conversavam vários membros do grande grupo de pessoas se viraram e rumaram como zumbis na direção de uma grande sombra.
Cássio reconheceu a vibração reverberar novamente e deu o alerta:
“São eles de novo!”
Além de Deborah, de Cássio e do senhor somente mais três pessoas, dois homens e uma mulher, não foram atraídos pela música, eram todo surdos.
Eles permaneceram parados enquanto uma grande medusa de cristal surgiu. As pessoas atraídas por elas abriram suas bocas e seus gritos de terror seriam ouvidos se não fosse pela providencial deficiência auditiva, suas almas começaram a subir e encher o ar como se fossem névoa carregando rostos efêmeros e apavorados antes de serem dissolvidos e sugados pela criatura.
Todos correram, Cássio puxou a roupa de Deborah mas está permaneceu impassível e gesticulou para o menino.
“Não podemos nos esconder sempre.” – foi o que ela disse levantando a pistola que tomou do policial e mirando a criatura.
Ela nunca havia dado um tiro na vida, seria a primeira vez.
Mesmo tremendo ela fez pontaria e puxou o gatilho. Ela sentiu o tranco da arma, mas não ouviu a explosão do disparo e nem o brado de desespero e dor emitido pela criatura que mais uma vez tremeu sues tentáculos, agora de agonia, antes de despencar no chão e se estilhaçar como vidro.
O que se viu a seguir foi um espetáculo surreal. Os restos da criatura brilharam tanto a ponto de doer os olhos, um turbilhão de cores saia de seu interior enquanto vários espectros sobre a forma de espirais de fumaça deixavam sua carcaça.
Cássio olhou para tudo aquilo e reconheceu entre os espectros duas faces distorcidas, mas aparentemente aliviadas, ele não sabia, mas eram Carine e seu pai, agora juntos e finalmente livres.
Ao mesmo tempo em que aqueles espíritos cativos conheciam a liberdade os corpos abandonados caiam ao chão e seus olhos readquiriam o aspecto de antes, porém não refletiam nada além da ausência de vida. Eles estavam mortos.
Deborah percebeu duas novas sombras se aproximarem, duas medusas que tentavam desesperadamente recolher as almas que escapavam. A moça atirou de novo e o mesmo espetáculo se repetiu, apesar de assustadores aqueles seres eram frágeis e fáceis de matar.
O menino observava tudo e ria, um sorriso de vitória e vingança. Logo as outros pessoas que correram reapareceram.
“Podemos vencê-los. Podemos vencê-los.” – eram o que todos diziam em sua linguagem de sinais.
Deborah e Cássio seguiram com o grupo. Uma pequena resistência foi formada naquela cidade e no mundo todo histórias semelhantes eram repetidas. Aqueles que não ouviam a música tiveram uma chance, mas bilhões foram levados até finalmente os estranhos invasores terminarem sua pilhagem de almas e abandonarem o planeta, deixando para trás um mundo de sobreviventes, mas dominado pelo silêncio.

Nenhum comentário:

Postar um comentário