quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Ao Sabor do Vento






Relatório número 32.145: percentual remanescente 73%, taxa de mortalidade de 0,213% por década. Nova atualização do percentual estimado na data prevista para alcançar o destino: 32%, margem de erro de 6,35%.


    
    A vinte anos-luz uma formidável gigante vermelha começava a mostrar os primeiros sinais de convulsão,alertas precedentes de uma explosão que já aconteceu há exatos vinte anos e pela qual ele esperava pacientemente.

     Va’a foi criado para isso, esperar e vigiar, e agora estava ali se preparando para o terceiro grande evento de sua existência.
     E em sua longa vigília Va’a pouco tinha o que fazer, apenas monitorar e calcular. É o resumo do que era.
     Mas desde sua ativação, seu primeiro grande momento, algo diferente aconteceu, não era apenas mais um imenso calculador nascendo, era também a aurora de uma nova consciência, a realização máxima de seus criadores. Tinha que ser assim, precisavam de um ser autoconsciente para ajudá-los a ir aonde eles não poderiam chegar sozinhos. Somente um ser consciente poderia conduzi-los em relativa segurança pelos caminhos virgens da galáxia.
     Concebido para as estrelas, a esse destino Va’a pertencia. E seu segundo grande momento foi ser lançado para fora do Sistema Solar. Abandonando seu berço, a órbita terrestre, seguindo lentamente pelo sistema solar interior e mergulhando em direção a Terra mais duas vezes, não para uma despedida e sim para ganhar impulso e seguir rumo a Júpiter e usá-lo como trampolim derradeiro para o grande salto além dos domínios do Sol.
     Ele era uma nave passiva, possuía apenas os motores necessários para uma correção de rota caso fosse preciso. No mais navegava apenas utilizando a atração gravitacional de grandes corpos celestes, isso até o momento onde utilizaria outra forma de impulso, impulso também dependente de forças externas.
     Entretanto sua viagem não era solitária. Seu gigantesco corpo formado de metal, compostos sintéticos e nanocomponentes portava uma preciosa carga: seres como eu e você, mais de um milhão de humanos o preenchiam, uma geração inteira hibernava num torpor quase eterno. E a maioria deles iria perecer. Mas haviam escolhido esse destino, era um pequeno grande grupo que preferiu ser sepultado vivo no céu a ficar na Terra enquanto essa mergulhava mais uma vez em um círculo de decadência provocado pelos próprios homens. Aquele pedaço da humanidade resolveu partir, chamados de loucos por seus contemporâneos eles se arriscavam em uma viagem sem garantias de sucesso apenas com a esperança de um dia ressuscitarem em um mundo longínquo e começar tudo novamente, se não fosse assim que morressem sem dor, mas com o coração em paz.
     Va’a era o guia dessa empreitada. Era ao mesmo tempo a bússola, o timoneiro e a caravela usados no tempo das grandes travessias marítimas, levando homens rumo ao desconhecido com a promessa de uma Terra Nova, mas como naqueles tempos deixava muitas vidas se perderem pelo caminho.
     Os sensores externos sentiam a alteração dos campos gravitacionais, a intensidade dos raios cósmicos variava drasticamente há várias semanas terrestres, ondas irregulares de neutrinos atravessam o corpo da nave como os fantasmas que eram. Os motores estavam de prontidão. A descomunal vela dourada com várias dezenas de quilômetros quadrados de extensão já havia sido estendida há muito tempo e refletia o brilho vermelho da estrela distante como um grande espelho celeste. Não precisaria esperar muito mais.
     Internamente as mudanças eram mais lentas e sutis, porém de grande importância. Aos poucos a bagagem humana ia se perdendo, nenhum sistema de manutenção de vida era infalível. E naquele momento de espera Va’a sentia mais uma consciência humana prestes a se apagar, e como sempre fazia quando isso acontecia ele identificou sua origem e sua posição entre as dezenas de milhares em seu ventre e vasculhou sua mente agonizante em busca de seus últimos resquícios de memória. Era a forma encontrada por ele para entender mais daqueles estranhos seres a quem devia a própria existência.
     Logo encontrou em seus arquivos uma identificação, tinha um nome similar ao dos outros, mas a ele bastava apenas um número, era um espécime do gênero masculino de 42 anos. Sua unidade de manutenção de vida vinha falhando há pelo menos 300 anos sem perspectiva de reparo e agora se desligaria totalmente como milhares de outras fariam um dia.
     Va’a mais uma vez sentiu algo estranho percorrer seus circuitos, uma sensação provocada pela incongruência de sua programação ávida por preservar uma vida ante a certeza de nada ser capaz de fazer para garantir isso. Talvez por isso aquela intromissão, aquele scanner deliberado da mente alheia, não queria que mais uma vida se perdesse sem saber quem realmente tinha sido antes de estar ali.
     Assim Va’a se integrou às sinapses daquele homem antes que elas se apagassem por completo e compartilhou mais uma vez da intrigante experiência humana, tão singular como as outras. E pelos olhos do outro aquela máquina superavançada vislumbrou novamente o crescimento e o desenvolvimento humano, as descobertas do mundo feito por aquele ser, seus sonhos, seus amores, seus medos e seus anseios. Sentia agora como ele sentiu um dia a desesperança provocada com os caminhos tomados por grandes parcelas da humanidade, por um instante partilhou da paixão, uma estranha sensação humana que se esforçava para entender, causada pela perspectiva de uma nova vida entre as estrelas.
     E ele viu mais, descobriu nas memórias agonizantes daquele homem um ser igual a ele. Pois entrou em seus sonhos. Eram sonhos que remetiam a uma noite no passado, um instante de solidão onde um homem em um barco primitivo estendia uma vela branca e navegava com a brisa fria da noite em um mar calmo, apenas a abóbada celeste e sua imensidão de estrelas testemunhavam aquele momento. Sim, aquele homem um dia navegou tal como ele fazia agora, e pela primeira vez ele entendeu um pouco o que era a paixão humana. A paixão por navegar, por desbravar espaços intangíveis, era aquilo o que movimentava aquele grupo dissidente a qual transportava.
     O sonho tornou-se menos nítido, as estrelas daquele céu onírico apagavam-se uma a uma. O sistema de manutenção de vida daquela unidade parou de funcionar. Aquele homem estava morto.
     Mas Va’a conservou em sua memória aquele sonho e o recapitulou milhares de vezes em seus circuitos quânticos. Via-se como aquele navegador esperando um vento cósmico e continuar sua jornada.
     Não era necessário esperar mais. A contagem de neutrinos se elevava, o brilho vermelho se extinguia rapidamente, mas em seu lugar uma fulgurante tempestade de luz explodiu, brilhou em todos os espectros e inundou aquela parte do espaço iluminando toda a galáxia como um milhão de sóis. A gigante vermelha sucumbira e em seu lugar uma supernova surgira como uma Fênix renascida mergulhando a nave com uma mortal radiação e colocando a prova os grandes escudos eletromagnéticos que protegiam o que restava da bagagem humana.
     O grande cérebro artificial de Va’a mantinha-se em prontidão, seu terceiro grande momento havia chegado. Depois da lenta viagem até aquele confim da galáxia e da longa espera finalmente ele poderia agora navegar como o homem e seu sonho. Sua vela estendida refletia o grande astro e já ganhava um pouco de impulso arrastando a grande estrutura para a última etapa da grande viagem. Aquilo era apenas uma fraca brisa, precedia o grande vento necessário para seguir em frente e que não tardaria a chegar.
     Uma grande aceleração foi registrada. Os escudos eletromagnéticos operavam no limite, era possível ver duas pequenas auroras se formarem nos pólos da nave, era o sinal provocado pela intensa chuva de raios cósmicos oriundos da supernova, o vento estelar tão esperado. Agora era preciso apenas acionar os motores como lemes, corrigir a posição da grande vela e dirigir-se calmamente ao destino traçado centenas de anos atrás.
     Va’a deslocava-se lentamente, viajando ao sabor do vento cósmico. Navegando com as estrelas por testemunha e repetindo em um mar diferente a mesma história da espécie que o criou.

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