A chuva começou a cair,
breve como sempre, aproveitei e armazenei parte de suas gotas em um pequeno
recipiente que tinha para aquele fim. Era preciso aproveitar, aquela era a água
de melhor qualidade a disposição. Infelizmente mal o recipiente se encheu a chuva
parou. Não havia problema, em breve outra viria. Mas enquanto isso o céu
noturno da Segunda Lua começou a limpar, as nuvens iam se dissipando revelando
parte do grande crescente do planeta Sagan rodeado de algumas de suas luas,
mais além as duas distantes estrelas que completavam aquele sistema estelar
múltiplo.
As demais estrelas da galáxia eram tênues demais, só as mais
brilhantes conseguiam romper a luminosidade provocada pelos astros mais
próximos.
Bem, aquilo era tudo
que podia ver de meu ângulo de visão restrito. Eu estava alguns metros abaixo
do nível do solo, no fundo de uma espécie de poço, na verdade minha cela
naquele mundo distante. Tremia um pouco de frio encharcado que estava pela
chuva, totalmente nu não tinha nada além de minhas mãos para me proteger, me
coloquei em posição fetal e me colei a parede em busca de amparo.
Ainda olhando para o
pequeno pedaço de céu a que tinha direito sinto uma luz forte e fecho os olhos
com medo de me cegar. Uma breve esperança toma conta de mim, seriam eles? Não,
não eram. Eram apenas mais grunhos, sentinelas sempre alertas, vieram ver seu
prisioneiro. Mesmo com o foco de luz incidindo diretamente sobre mim distingui
três grunhos na boca do poço, um deles me jogou algo, era minha cota de ração.
Depois disso grunhiram entre si e foram embora, pelo menos era o que
aparentava, mas sabia estarem de vigia perto do poço. Eu era valioso demais
para não fazerem isto.
Olhei para a cota de
razão, um pedaço duro composto de diversos nutrientes, e avancei sobre ela.
Apesar de ter perdido quase todos os meus dentes comendo aquilo, aprendi que o
gosto era melhor quando fresca, embora naquele mundo não houvesse germes
capazes de decompor aquela mistura. Os cientistas grunhos haviam nos estudado e
sintetizado aquele alimento para nós, isto depois de diversos experimentos,
experimentos muitas vezes bizarros.
Eu era o remanescente
de uma equipe de quarenta e sete exploradores enviados em missão. Todos os
outros quarenta e seis haviam perecido em experiências cientificas e sessões de
tortura promovidas pelos grunhos, aquele povo bárbaro e selvagem. Eles queriam
nossa tecnologia, necessária para saltos hiperluz, e o segredo de nossa força
(erámos fisicamente superiores a eles, mas a única razão disso era a baixa
gravidade de seus mundos, se comparada a que estávamos acostumados na Terra).
Olhei mais uma vez para o crescente no
céu, sabia que aquela formação se repetia em um período fixo de tempo, cerca de
oito meses terrestres, e era por ela que calculava minha permanência ali, cinco
anos. Cinco anos fazia que havíamos chegado aquele mundo esquecido. E minha
memória voltou estes cinco anos, me lembrei do motivo de estarmos naquele
lugar...
Os grandes teóricos do
passado, primeiros a se aventurarem no estudo de exoplanetas e na recém-criada
ciência da exobiologia, ficariam tão extasiados quanto eu quando contemplei
aquele fantástico sistema de luas pela primeiras vez.
Foi batizado como
Sistema de Sagan, uma merecida homenagem a um dos entusiastas da vida
alienígena. Consiste em um grande planeta rochoso, uma Super-Terra de 1,5 vezes
o tamanho de Júpiter, era o grande planeta Sagan. Orbitando este planeta há um
formidável conjunto de luas, vinte e uma no total e quatro delas são enormes,
todas são menores que a Terra, mas de qualquer forma são de tamanho
considerável, as luas Sagan 4 e 3 são bem maiores que Marte e as luas Sagan 2 e
1 são ambas do tamanho de Vênus. O que torna este conjunto especial é o fato do
planeta Sagan orbitar a zona habitável de sua estrela, uma anã vermelha, ou
seja, mesmo que o planeta, por seu gigantismo, não seja um grande candidato a
presença de vida as suas luas principais o são e esperava-se encontrar pelo
menos uma com condições propícias para seu desenvolvimento.
Só por isto é fácil
entender a empolgação de qualquer exobiologista pelo Sistema Sagan. Assim sendo
logo que a tecnologia hiperluz se tornou disponível o Sistema Sagan foi o
primeiro a receber sondas automáticas, e o que elas descobriram estava acima de
nossas mais otimistas expectativas! Havia vida no Sistema Sagan, e não apenas
em uma de suas luas, na verdade as quatro luas maiores estavam repletas de
formas de vida. Mais que isso: havia vida inteligente, tudo indicava que uma
civilização tecnológica havia se desenvolvido em pelo menos um dos mundos do
Sistema Sagan. As imagens das primeiras sondas revelaram luzes noturnas, logo
outras fotografaram o que pareciam ser cidades. Não demorou muito sinais de
rádio foram captados.
A humanidade estava em
êxtase, era preciso saber mais. Então foi organizada a missão. Quarenta e sete
tripulantes altamente qualificados foram selecionados, entre eles eu. Iriamos
partir no primeiro voo hiperluz para um mundo sabiamente habitado por outra
civilização. Desde o início reinavam dúvidas: como seriam estes mundos,
guardariam alguma semelhança com a Terra? E como seriamos recebidos?
A primeira das questões
tinha uma resposta mais do que satisfatória: as quatro luas de Sagan eram muito
mais similares a Terra do que supúnhamos, havia oceanos e uma atmosfera rica em
oxigênio. Como disse antes, foi grande a empolgação ao avistarmos aqueles
mundos, quatro pequenas esferas azuis circundando um gigante rochoso. Por meses
permanecemos em órbita de Sagan, estudando e monitorando aqueles mundos,
enviamos sondas remotas ou fazíamos sobrevoos às quatro luas.
Descobrimos coisas
interessantes. As quatro luas eram habitadas por diferentes espécies, mas
apenas uma dominava todas, os grunhos, eles eram avançados tecnologicamente,
haviam desenvolvido o voo espacial tripulado. Também identificamos seu mundo de
origem, era Sagan 2, a segunda maior lua do sistema.
A história daquela
civilização seguiu passos diferentes da nossa. Ao contrário dos humanos os
grunhos tinham mundos relativamente próximos para colonizar. No século XX o
homem pisou na Lua da Terra pela primeira vez, mas demorou muito até
estabelecer uma base naquele satélite, isto porque não havia nada na Lua que
compensasse sua exploração com a tecnologia da época. Em Sagan era diferente,
em poucas semanas, com tecnologia similar as utilizadas pelas naves Apollo, era
possível ir de um mundo a outro, e estes mundos eram todos iguais em composição
atmosférica e temperatura, era o mesmo que ir de um continente a outro na
Terra, ou seja, valia os riscos.
E por isso os grunhos
se espalharam pelas quatro luas.
Mas desde nossa chegada
ficava uma questão em aberto: aqueles mundos tinham praticamente a mesma idade
e haviam passado pelo mesmo processo evolutivo, apresentado todos eles formas
de vida de alta complexidade, então por que só a civilização dos grunhos se
desenvolveu?
A resposta veio de nossas aterrissagens
furtivas e da pesquisa minuciosa que fizemos através de escavações em cada uma
daquelas luas e da monitorização e tradução da comunicação grunha, estávamos
ali há bastante tempo para sermos capazes de fazer isto com nossos
computadores. Infelizmente esta resposta não era nada animadora: realmente a
vida se desenvolveu de forma similar nas luas, seguiram o mesmo processo de
evolução e passaram pelos mesmos períodos de extinção. Então formas de vida
inteligente surgiram, as primeiras foram em Sagan 3, eles chegaram a constituir
uma civilização, ainda havia vestígios deles por toda aquela lua, chegaram até
mesmo a se lançar ao espaço e parecem ter alcançado e colonizado Sagan 4
(sabemos agora que aquela lua era habitável, mas estéril antes da chegada dos
exploradores de Sagan 3 dada a similaridade incrível de suas formas de vida),
entretanto não se aventuraram nas outras luas, talvez por já saberem serem
habitadas. Qualquer que seja o motivo a civilização de Sagan 3 (juntamente com
sua colônia em Sagan 4) entrou em decadência e a viagem espacial foi esquecida.
Milhares de anos mais tarde uma espécie de Sagan 1, a maior das luas, desenvolveu
novamente o voo espacial tripulado, eles estabeleceram bases nas quatro luas e,
ao que tudo indica, estabeleceram uma relação de comércio e exploração de seus
habitantes. Nesta época Sagan 3 e 4 viviam uma era industrial de tecnologia
estagnada e recursos naturais esgotados, enquanto Sagan 2 experimentava o
início do que poderia ser sua primeira revolução industrial.
Sabemos como é a
civilização original de Sagan 3 e 4, são um raça de animais moles, parecidos
com nosso moluscos, manipulam o mundo a seu redor por tentáculos, porém restam
muito poucos e eles são serviçais dos grunhos. Dos habitantes de Sagan 1 só
restam fósseis, eram criaturas insetoídes, não muito grandes, mas com sistema
nervoso bem desenvolvido. Sabemos por nossas pesquisas que eles foram extintos
pelos grunhos em uma extensa guerra.
E quem eram os grunhos?
Originários de Sagan 2
eles são uma raça vagamente humanoide, como nós eles são animais sociais, mas
são hermafroditas, se reproduzindo na época certa. Comunicam-se com sons que
nos lembram grunhidos, daí a denominação de grunhos. Possuem diversos apêndices
no tronco ao invés de braços e tem grande poder de manipulação e dedução.
Talvez por isto tenham suplantado os habitantes de Sagan 1.
Pelo que conseguimos
coletar houve uma revolução quando a tecnologia de Sagan 1 finalmente foi
dominada pelos grunhos e eles se sentiram no direito de dar as cartas. Há
muitas crateras em Sagan 1 e alguns vestígios de radiação, tudo indica que um
holocausto nuclear atingiu aquela lua há não muito tempo atrás, talvez na mesma
época em que deixávamos o Sistema Solar pela primeira vez ainda em
ultrapassadas naves subluz.
Bem, mas o que sabíamos
era isso: os grunhos dominavam aquele sistema e ao que tudo indicava eram uma
raça belicosa. Mas ainda faltava um último teste: um contato de Terceiro Grau.
Como eles reagiriam a nossa presença?
Assim partimos em
várias missões, dividimos a tripulação e cada grupo seguiu em naves diferentes
para diversas áreas das quatro luas. Foi nosso maior erro.
Todos fomos capturados.
Antes disso conseguimos enviar um sinal para a nave que ficou remotamente em
órbita do planeta Sagan, mas nunca soube se a mensagem chegou ou não.
O que se seguiu foi um
pesadelo. Nos reuniram em uma prisão em Sagan 2, ali reencontrei meus quarenta
e seis companheiros, todos tão feridos quanto eu. Já neste primeiro dia vi
alguns serem dissecados ainda com vida. Nos estudávamos como nós estudamos
cobaias. Nosso equipamento foi detalhadamente examinado, nossos robôs
desmontados (hoje acredito que de início eles não distinguiam entre nós ou
nossos robôs como os verdadeiros exploradores). Eu e alguns de nós já sabíamos
um pouco sobre o idioma grunho, muito pouco é verdade, pois muitos dos sons
produzidos eram inaudíveis aos ouvidos humanos, mas já era o suficiente para
entender suas intenções. Eles não nos consideravam uma ameaça, mas viam nossa
tecnologia com bons olhos, era muito acima de tudo o que possuíam.
Assim decidiram nos
trancafiar, e se não pudessem tirar nada de nós que tentassem aproveitar o máximo
da tecnologia que havíamos trago. Quanto a nós, éramos apenas experimentos,
nada mais. E um a um fomos utilizados para este fim, até não restar mais
ninguém a não ser eu.
E foi assim que vim
parar ali. No fundo daquele covil alienígena, e isto por cinco anos.
Cinco anos de captura,
cinco anos do envio de nossa mensagem.
“Não preciso esperar muito mais, o
sofrimento vai acabar. Em breve eles virão.” – pensei comigo e mais uma vez
olhei para cima, para a boca do poço. Novamente vi as nuvens se dissipando e
novamente um clarão me iluminou. Entretanto este era muito mais forte, desta
vez não eram os grunhos.
A luz inundou todo o
buraco. Senti meu corpo se erguer atraído por uma força mágica e me ascender ao
céu vagarosamente. Finalmente fui erguido acima do nível do solo, acima de
minha masmorra. Olhei em volta, enquanto subia via grunhos desesperados
correndo de um lado para outro enquanto seus corpos eram desintegrados, ao
longe vi os clarões de cidades grunhas enquanto eram aniquiladas. Artilharia
antiaérea era disparada a esmo, mas inutilmente, estavam sofrendo um ataque avassalador
demais para ser repelido.
Olhando para o céu, era
possível ver clarões iluminando a superfície das outras luas, era uma ofensiva
em grande escala.
Sorri com aquilo e
minha visão começou a embaçar, um grande cansaço tomou conta de meu corpo e não
consegui manter mais os olhos abertos, deixei apenas meu corpo flutuar para o
desconhecido.
Ao abrir novamente os
olhos descubro espantado não estar mais no buraco grunho. Também não estou mais
nu, roupas brancas e limpas cobrem meu corpo, corpo este totalmente recuperado
de qualquer trauma físico. Estou deitado numa cama, uma cama macia e agradável.
Senti tanto conforto naquele momento que sorri e descobri que tinha todos os
dentes novamente.
Me sentindo plenamente
recuperado me levantei, estava em um pequeno aposento, um aposento familiar,
por isto não foi difícil achar a saída. E logo na porta eu o vi, a primeira vez
em cinco anos! Outro ser humano!
Era um homem, ele se
colocou em posição de sentido e bateu continência. Eu, ainda desorientado,
perguntei:
- Você é real? Será que
não estou sonhando ou não morri?
O homem apenas sorriu e
respondeu:
- Posso garantir que
não Senhor. Tenho a honra de ser o primeiro a lhe parabenizar, graças a sua
mensagem conseguimos achar um novo lar para a humanidade.
Então toda a memória
voltou. A mensagem havia sido realmente enviada. A mensagem onde avisávamos
serem as quatro luas realmente habitáveis e que poderiam fornecer uma nova
morada para a raça humana, mas já havia uma raça alienígena de tecnologia
arcaica vivendo ali.
- Então a Diretriz foi
cumprida? – perguntei.
- Sim Senhor. Após a
mensagem passamos cinco anos monitorando e estudando os grunhos mais
cuidadosamente até decidirmos pelo ataque e aniquilação da espécie. Tudo
conforme nossa Diretriz. Infelizmente o Senhor sabe que esta mesma Diretriz
impedia um resgate para não alerta-los de nossa ofensiva.
- Sim, eu sei disso.
- Sinto pelos outros,
foi uma surpresa encontrarmos alguém ainda com vida. Escaneamos todo o sistema
em busca de padrões cerebrais condizentes com humanos. Mas só encontramos o seu
e devo dizer que agora o Senhor é considerado um herói.
De prisioneiro a herói.
Este título não me importava. Mas era bom saber que havíamos riscado do
Universo uma raça tão perigosa quanto os grunhos. Eles deveriam saber que neste
quesito não poderiam competir conosco
Nenhum comentário:
Postar um comentário