(Este conto foi originalmente publicado no Brasil em 1985 no livro "Máquinas que pensam", obra editada por Isaac Asimov, Patrícia S. Warrick e Martin H. Greenberg)
Não
tenho boca e preciso gritar
Harlan
Ellison
(1967)
Se
os robôs sempre foram encarados com simpatia pela ficção cientifica
contemporânea, já não se pode dizer o mesmo dos computadores. Grande parte das
obras desse tipo descreve o horror, tédio ou desumanização de um mundo
controlado por máquinas inteligentes. “The Machine Stops”, de E. M. Forster
(1912), foi uma das primeiras a tratar do assunto, precedendo “We”, de
Eugene Zamiatin (1922). O computador ainda não tinha sido inventado, e por isso
ambas não usaram o termo, mas os aparelhos que aparecem nelas funcionam
exatamente como computadores. E á medida que a tecnologia foi evoluindo, a
tradição de hostilidade à máquina aumentou. Colossus (1966), de
D. E fones, 2001: uma odisséia no espaço (1968), de Arthur Clarke, e Este mundo perfeito (1970), de Ira Levin, figuram entre os romances mais famosos do gênero. Nenhum, porém, se compara com o terror diabólico do conto de Harlan Ellison, “Não tenho boca e preciso gritar”. Merece, com toda a justiça, o título que recebeu: a melhor história de horror que a ficção científica criou até hoje em torno dos computadores. Pense no sonho mais horrível que você já teve, some com os piores pesadelos que amigos lhe contaram, e o resultado final é um modesto formigueiro perto da montanha de monstruosidades imaginada por Ellison.
D. E fones, 2001: uma odisséia no espaço (1968), de Arthur Clarke, e Este mundo perfeito (1970), de Ira Levin, figuram entre os romances mais famosos do gênero. Nenhum, porém, se compara com o terror diabólico do conto de Harlan Ellison, “Não tenho boca e preciso gritar”. Merece, com toda a justiça, o título que recebeu: a melhor história de horror que a ficção científica criou até hoje em torno dos computadores. Pense no sonho mais horrível que você já teve, some com os piores pesadelos que amigos lhe contaram, e o resultado final é um modesto formigueiro perto da montanha de monstruosidades imaginada por Ellison.
A
inventividade deste escritor ficou consagrada como a mais brilhante, fantástica
e pessimista que já se viu. Boa parte de sua obra se compõe de contos
impressionantes, cuja antologia mais recente, Stalking the
Nightmare (À espreita de pesadelos), data de 1982. Nascido no estado de
Ohio, em 1934, e residindo agora em Sherman Oaks, Califórnia, Ellison é
detentor de três prêmios Nebula, sete e meio (sic) Hugos, três concedidos pela
Liga de Escritores Americanos, e ainda do troféu Edgar Allan Poe, atribuído ao
melhor autor de ficção de mistério. Considerado o mais polêmico de todos os
escritores que se dedicam à ficção cientifica, tem o maior orgulho e se empenha
em manter esse título. Editou também duas célebres antologias, das mais
originais no gênero Dangerous Visions (Visões perigosas) e Again.
Dangerous Visions (Novas visões perigosas), em 1967 e 1972, respectivamente.
“Não
tenho boca e preciso gritar”, sob a aparente camada de restos de carne podre repugnante
e gélidas devastações árticas, possui unia qualidade intrinsecamente mítica.
AM, o computador, é dotado de inteligência sensível. Lúcido e torturado,
declara, à maneira de Descartes: penso, logo existo. Subdivide-se em duas
partes sendo a segunda uma consciência subjetiva que encara o mundo como
objeto. A consequência imediata da sua grande capacidade de raciocínio em
relação ao homem não é livrá-lo da dor, mas causar-lhe sofrimento. Em forma de
metáfora, o computador AM projeta, com incrível intensidade, o dilema humano.
Sua
consciência está encurralada e isolada no cárcere da própria capacidade de
raciocínio.
O
cadáver de Gorrister pendia flácido, sem o menor suporte, da paleta rosada — pendurado
lá no alto da câmara do computador; e nem se arrepiava com a brisa fria e oleoginosa
que soprava eternamente dentro da caverna principal. Virado de cabeça para baixo,
o corpo preso à parte inferior da paleta pela sola do pé direito, não tinha uma
só gota de sangue, drenado por completo depois da incisão exata que lhe haviam
feito, de um canto a outro do queixo saliente. E não se via nenhuma mancha
vermelha na superfície lustrosa do piso metálico.
Quando
o próprio Gorrister veio se juntar ao nosso grupo e, levantando os olhos, enxergou
o cadáver, já era tarde demais para a gente se dar conta que, mais uma vez, AM nos
pregava uma peça, se divertindo às nossas custas — mero passatempo por parte da
máquina. Três de nós vomitaram, virando mutuamente as costas num reflexo tão
antigo quanto a náusea que o provocou.
Gorrister
empalideceu. Foi quase como se deparasse com um fetiche de macumba e sentisse
medo do que poderia vir a acontecer.
—
Meu Deus — murmurou, afastando-se logo dali.
Passado
algum tempo, saímos à procura dele. Fomos encontrá-lo sentado de costas para um
dos gélidos bancos menores, com a cabeça caída entre as mãos. Ellen ajoelhou-se
a seu lado e acariciou-lhe o cabelo. Nem se mexeu, mas dava para se ouvir
claramente a voz que vinha do rosto encoberto.
—
Por que não liquida com a gente de uma vez e acaba logo com isto? Céus, não sei
quanto tempo ainda vou poder agüentar.
Era
o centésimo nono ano que passávamos no computador.
E
Gorrister falava por todos nós.
Nimdok
(nome impingido pela máquina, que achava graça em sonoridades exóticas) começou
a desvairar com a idéia de que havia comida enlatada nas cavernas de gelo.
Gorrister e eu estávamos em dúvida.
—
É outra idiotice — garanti. — Como aquela porcaria de elefante congelado que AM
inventou pra gente. Vamos nos cansar à toa pra ir até lá e no fim descobrir que
está tudo estragado ou coisa parecida. O melhor é deixar isso de lado. E
continuar por aqui mesmo, pois se não quiser que a gente morra, muito em breve terá
que aparecer com algo. Benny deu de ombros. Fazia três dias que tínhamos comido
pela última vez.
Minhocas.
Grossas, pegajosas.
Nimdok
já havia perdido a certeza. Sabia que existia uma possibilidade, mas estava emagrecendo.
Lá não podia ser muito pior do que aqui. Mais frio, mas que importância tinha?
Quente, frio, granizo, lava, furúnculos ou gafanhotos — nunca fazia diferença:
a máquina se masturbava e a gente tinha que engolir ou morrer.
Foi
Ellen quem decidiu por nós.
—
Preciso comer alguma coisa, Ted. Talvez lá tenha algumas latas de peras ou pêssegos
Bartlett. Por favor, Ted, não custa tentar.
Concordei
logo. Ora, que porra. Estava me lixando pra tudo. Mas Ellen ficou muito agradecida.
Topou trepar duas vezes comigo, quando não era a minha vez. Até isso não interessava
mais. E ela nunca gozava, nem sei por que insistia. A máquina, porém, ficava dando
risadinhas toda vez que a gente transava. Bem alto, e vinha lá do teto, pelas
costas, de tudo quanto é canto, no maior deboche. Aquela coisa, se finando de
rir. Quase sempre pensava em AM como uma coisa neutra, sem alma; mas o
resto do tempo imaginava como pessoa, no masculino.., paternal...
patriarcal... e muito ciumento. Ele. Ela. Deus no papel de Papai Tresloucado.
Partimos
numa quinta-feira. A máquina sempre nos mantinha atualizados em matéria e
datas. A passagem do tempo era importante: claro que não para nós, porra, mas para
ele... ela... para AM. Quinta-feira. Obrigado.
Nimdok
e Gorrister carregaram Ellen durante certo tempo, fazendo cadeirinha com as
mãos e pulsos entrelaçados. Benny e eu íamos, respectivamente, na frente e
atrás, para garantir que, se acontecesse alguma coisa, só pegaria um de nós
dois e Ellen, pelo menos, sairia ilesa. Ilesa, imaginem. Como se fizesse
diferença.
As
cavernas de gelo ficavam a cerca de cento e cinqüenta quilômetros de distância e,
no segundo dia, quando estávamos descansando sob o sol causticante que AM tinha
feito despontar, começou a cair uma espécie de maná. Com gosto de mijo de porco
fervido.
Comemos
tudo.
No
terceiro dia atravessamos um vale de coisas obsoletas, repleto de escombros enferrujados
de antigos centros de processamento de dados. AM era tão impiedoso com sua
própria vida quanto com a nossa. Eis aí uma característica da sua
personalidade: lutar pela perfeição. Quando se tratava de eliminar elementos
improdutivos para o próprio funcionamento, naquele mecanismo descomunal onde
caberia o mundo, ou de aperfeiçoar métodos de tortura, mostrava-se tão
meticuloso quanto as pessoas que o tinham inventado — e que há muito tinham se
transformado em pó — poderiam jamais sonhar.
A
luz começou a se filtrar lá do alto e percebemos que devíamos estar bem perto
da superfície. Mas não tentamos rastejar para ir verificar. Não havia
praticamente nada ali fora — fazia mais de um século que não existia nada que
se pudesse considerar como alguma coisa. Apenas o revestimento crestado do que
outrora servira de morada para bilhões de criaturas vivas. Agora os únicos
sobreviventes éramos nós cinco, aqui dentro, no fundo, sozinhos com AM.
Ouvi
a voz de Ellen, frenética:
—
Não, Benny! Pára com isso, por favor!
E
então me dei conta de que já fazia vários minutos que Benny vinha murmurando baixinho.
Repetia, sem parar:
—
Vou fugir, vou dar o fora daqui...
E
retorcia a cara simiesca numa expressão simultânea de alegria e tristeza, simplesmente
beatífica. As cicatrizes da radiação causada por AM durante o “festival” se misturavam
aos esgares que lhe contraíam as feições esbranquiçadas — dir-se-ía que não combinavam
umas com as outras. Talvez fosse Benny o mais feliz de nós todos: há muitos anos
que vivia apalermado, feito doido varrido.
Mas
mesmo que pudéssemos chamar AM de todos os palavrões que bem entendêssemos, ter
as idéias mais desfavoráveis sobre os centros de processamento de da dos
queimados e as placas de base corroídas, dos circuitos interrompidos e lâmpadas
de controle quebradas, a máquina não tolerava a menor tentativa de fuga. Benny
saltou longe quando quis segurá-lo. Juntou um mostrador de cubo de memória,
caído de lado e cheio de componentes estragados. Ficou ali um instante agachado,
lembrando o chimpanzé em que AM pretendia transformá-lo.
De
repente deu outro pulo mais alto, se agarrou a uma viga de metal esburacado e
enferrujado,
e foi subindo por ela, palmo a palmo, feito bicho, até se empoleirar numa
trave
saliente, a seis metros acima do chão.
—
Ai, Ted, Nimdok, por favor, ajudem, peçam pra ele descer antes que...
Ellen
não completou a frase. Os olhos se encheram de lágrimas. Fez um gesto
indefinido
com as mãos.
Tarde
demais. Nenhum de nós queria estar perto dele quando acontecesse, fatalmente, o
pior. Mas, além disso, sabíamos muito bem a causa da preocupação dela.
Quando
AM resolveu modificar Benny, durante a fase completamente histérica e irracional
da máquina, não foi apenas a cara que o computador transformou em gigantesco gorila.
As partes íntimas também ficaram enormes; ela adorou a idéia! Se entregava a
nós, como seria de esperar, mas gostava mesmo era de transar com ele.
Ah,
Ellen, a mulher que colocávamos num pedestal, a pura e imaculada Ellen; ah, Ellen,
a impoluta! Rebotalho nojento.
Gorrister
esbofeteou-a. Caiu bruscamente no chão, erguendo logo os olhos para o pobre
Benny enlouquecido, e desatou a chorar. Era a sua grande arma de defesa. Já estávamos
acostumados, há setenta e cinco anos, com aquilo. Gorrister deu-lhe um pontapé
no lombo.
Foi
então que se ouviu o ruído. Primeiro de leve. Metade som e metade luz, qualquer
coisa começou a brilhar nos olhos de Benny e a pulsar, cada vez mais forte, com
sonoridade imperceptível que foi se tornando ensurdecedora e ofuscante à medida
que a luz/som acelerava o ritmo. A dor devia ser muito grande e intensificada
pelo aumento da claridade e pelo volume crescente do ruído, pois Benny se pôs a
uivar feito bicho. A princípio baixinho, com a luz ainda fraca e o ruído
abafado, depois mais alto, à proporção que encolhia os ombros: arqueou as
costas, como se quisesse se livrar de tudo aquilo. Cruzou as mãos no peito,
igual a um esquilo. Entortou a cabeça de lado. O focinho triste de macaco se
contorceu de angústia. De repente, quando o ruído que lhe saía pelos olhos ficou
mais forte, começou a gritar. Aos berros, sem parar. Tapei as orelhas com as
mãos, mas não adiantou, pois continuava escutando. A dor que ele sentia me
provocava arrepios semelhantes aos de uma folha de estanho rangendo nos dentes.
E
Benny se pôs repentinamente de pé, na beira da saliência, com um movimento tão
brusco que parecia ter virado fantoche. Os olhos agora lançavam dois grandes
raios luminosos. O som crescia de intensidade, cada vez mais, numa escala
inacreditável. Por fim caiu de ponta-cabeça, indo bater com estrondo no piso metálico.
Sacudiu o corpo todo em contrações espasmódicas, enquanto os raios luminosos giravam
em torno, sem parar, e o barulho aumentava, em verdadeira espiral sonora, até
ultrapassar o limite normal de audição.
Depois
a luz foi enfraquecendo aos poucos, retraindo-se para o recesso do crânio, o som
diminuiu e Benny continuou ali deitado, chorando de maneira confrangedora.
Os
olhos lembravam dois nacos de geléia flácida e úmida, parecida com pus. AM tinha
deixado ele cego. Gorrister, Nimdok e eu... nos viramos para outro lado. Mas
não sem antes ver a expressão de alívio no rosto apaixonado, preocupado, de
Ellen. Uma claridade verde-mar se infiltrava pela caverna onde acampamos. AM
forneceu madeira podre que a gente queimou, amontoando-se ao redor da triste e
patética fogueira, para contar histórias que impedissem Benny de chorar a
irremediável cegueira.
—
O que quer dizer AM? — perguntou.
Gorrister
explicou. Já tínhamos passado mil vezes pela mesma experiência, mas era a
história favorita de Benny.
—
A princípio significava Auto-Manipulado, depois passou a ser Adaptavel à manipulação
e mais tarde, quando desenvolveu consciência e adquiriu autonomia, pegou o apelido
de Ameaça Mortal; mas a essa altura já era tarde demais; por fim ele mesmo se
denominou AM1, uma autêntica prova de inteligência, pois quer dizer Sou...
cogito ergo sum... penso, logo existo.
Benny
babou um pouco e deu uma risadinha.
—
Havia o AM chinês, o russo, o americano e...
Não
conseguiu concluir a frase. Benny esmurrava as chapas metálicas do chão com o
punho enorme, cerrado. De puro descontentamento. Gorrister não começara a
história pela ordem, desde o início.
—
A Guerra Fria — recomeçou, — degenerou na Terceira Guerra Mundial, que ninguém
mais via jeito de acabar. Virou um conflito imenso, muito complicado, e por
isso precisaram de computadores para resolver a situação. Puseram de lado todos
os existentes até então e se dedicaram a construir o AM. Havia o AM chinês, o
russo, o americano e tudo corria bem, até que acabaram enchendo o planeta com
computadores idênticos, só diferenciados por um que outro elemento de montagem.
Mas um belo dia o AM descobriu os recursos que tinha, ligou os componentes e
programou tudo quanto era dado mortífero, dizimando a população mundial, com
exceção de nós cinco, e nos trouxe aqui para baixo. Benny sorriu tristemente.
Estava também babando de novo. Com a bainha da saia. Ellen enxugou-lhe a saliva
do canto da boca. Gorrister sempre procurava encurtar um pouco a história, mas
a verdade é que, além dos fatos propriamente ditos, não havia nada a acrescentar.
Nenhum de nós sabia a razão que levara AM a poupar somente cinco pessoas, justamente
nós, e passar o tempo inteiro a nos atormentar — e nos tornar, por assim dizer,
imortais...
No
meio da escuridão, um dos centros de processamento de dados entrou em atividade,
começando a zumbir. A quase um quilômetro de distância, no interior da caverna,
outro fez o mesmo. Depois, um por
um foi continuando no mesmo diapasão e a máquina toda se pôs a vibrar à medida
que se deixava empolgar pela idéia.
O
som aumentou. As luzes se acendiam nos painéis feito relâmpagos de calor. O barulho
cresceu cada vez mais até se assemelhar a um milhão de insetos metálicos, furibundos,
ameaçadores.
—
O que será isto? — exclamou Ellen, apavorada.
Mesmo
depois de tanto tempo, ainda não estava habituada com aquilo.
—
Desta vez vai ser terrível — disse Nimdok.
—
Decerto ele quer falar — opinou Gorrister.
—
Vamos dar o fora daqui, porra! — gritei de repente, pondo-me em pé.
—
Não, Ted, fica aí sentado... ele pode ter aberto buracos lá fora, ou outra
coisa qualquer. Não vai dar pra ver, está escuro demais — aconselhou Gorrister,
resignado.
Aí
então escutamos... não sei...
Algo
avançando
em nossa direção, nas trevas. Enorme, se arrastando, peludo, molhado, vinha
vindo. Não se conseguia nem vislumbrar, mas havia aquela impressão maciça de corpulência,
se jogando sobre nós. Em plena escuridão, um grande peso se aproximava — era
mais uma espécie de sensação de pressão, de ar que se impunha dentro de um
espaço confinado, expandindo os contornos invisíveis de unia esfera. Benny começou
a choramingar. Nimdok mordeu com força o lábio inferior que tremia, tentando imobilizá-lo.
Ellen
deslizou pelo piso metálico para ir se abraçar a Gorrister. Espalhou-se uma profusão
de cheiros pela caverna — de tapete molhado de pele de animal, de veludo poeirento,
orquídeas podres, leite azedo, enxofre, manteiga rançosa, alisador a óleo,
graxa, pó de giz, couro cabeludo humano.
AM
estava apertando os parafusos. Fazendo cócegas em nós. Sentiu-se um fedor
de...
Quando
vi, gritava de dor na articulação da mandíbula. Saí correndo de quatro, feito
bicho, por aquele piso metálico, preso a uma série inacabável de rebites,
sufocado pelo fedor, a cabeça estalando de um sofrimento que me obrigava a
fugir, horrorizado. Escapei que nem barata, indo acabar lá fora, no escuro, com
aquele troço avançando, inexorável, atrás de mim. Os outros continuaram
ali dentro, aglomerados ao redor da fogueira, dando risadas.., um coro
histérico de gargalhadas malucas que ecoava nas trevas feito fumaça de madeira,
densa, multicor. Me afastei, o mais depressa possível, e me escondi.
Nunca
me disseram quantas horas, dias, ou até anos, fiquei assim. Ellen ralhou comigo
por ter “emburrado” e Nimdok tentou me convencer que os risos não passaram de reflexo
nervoso da parte deles.
Mas
eu sabia que não era o alívio que o soldado sente quando as balas só acertam em
quem está a seu lado. Nem tampouco um reflexo. Eles me odiavam. Não havia dúvida
que me hostilizavam e AM podia inclusive saber desse ódio, agravando minha
situação justamente por causa da intensidade dessa repulsão. Ele nos mantinha
vivos, rejuvenescidos, permanecendo sempre com a mesma idade que tínhamos
quando nos trouxera ali para baixo; e os outros me odiavam porque eu era o mais
moço e o menos atingido pelas investidas de AM.
Eu
sabia. E como, Santo Deus. Aqueles desgraçados e a víbora nojenta da Ellen. Benny
tinha sido um brilhante pensador, professor universitário; agora estava
reduzido à condição intermediária entre homem e macaco. A beleza de outrora,
destruída pela máquina. A lucidez de antes, transformada em loucura.
Homossexual, o computador lhe dera um membro digno de cavalo. AM havia
caprichado no caso de Benny. Gorrister era desses que se preocupam à toa.
Pacifista, se recusou a lutar na guerra; participou de marchas em prol da paz;
não sabia ficar parado — empreendedor, se batia por causas justas. Nas mãos de
AM se tornou indiferente, uma espécie de morto-vivo, privado de todos os
sonhos. Nimdok passava longos períodos de tempo sozinho no escuro. Nunca descobri
o que costumava fazer lá por fora, AM jamais permitiu que soubéssemos. Mas, seja
lá o que fosse, sempre voltava pálido, exausto, abalado, trêmulo, atingido de
alguma forma especial pelo computador, muito embora não atinássemos com o que
teria feito. E Ellen. Aquela esponja de bidê! AM a deixara em paz, tornando-a
mais devassa do que jamais sonharia ser. Toda aquela conversa fiada de doçura e
pureza, aquelas lembranças de amor sincero, as mentiras que queria que
acreditássemos: que só perdera a virgindade pouco antes de cair nas garras de
AM, que a trouxera para cá, junto com a gente. Pura obscenidade, aqueles
pretensos ares de recato, de honestidade, da minha Ellen. Imagina se não ia
adorar a situação: quatro homens exclusivos para ela. Não, AM lhe proporcionara
prazer, sim, mesmo que afirmasse que não era decente fazer aquilo.
Fui
o único a conservar a lucidez e a integridade. Palavra!
AM
não alterara meu cérebro. De jeito nenhum.
Apenas
tinha que suportar os castigos que inventava para nós. Todas as ilusões. pesadelos,
tormentos. Mas aquela escória humana, meus quatro companheiros, se haviam mancomunado
para me combater. Se não precisasse mantê-los à distância, me resguardando o
tempo inteiro, talvez ficasse mais fácil lutar contra AM.
A
essa altura a dor passou e comecei a chorar.
Ah,
Jesus, meu bom Jesus, se algum dia exististe e se Deus também existe, por favor,
eu imploro, eu suplico, tira-nos daqui ou então extermina conosco de uma vez
por todas. Pois neste instante acho que compreendi por completo, a ponto de
expressar em palavras: AM pretendia nos manter eternamente ali, no seu bojo,
retorcendo e torturando a gente para sempre. Aquela máquina nos odiava como nenhuma
criatura dotada de sensibilidade jamais foi capaz de odiar alguém. E estávamos
indefesos. Ficou, por fim, horrivelmente claro que:
Se
o bom Jesus existia, e Deus também, então Ele só podia ser AM.
O
furacão nos pegou com o impacto de uma geleira se desfazendo com estrondo no
mar. Era uma presença palpável. Ventos que açoitavam, empurrando de volta pelo mesmo
caminho por onde tínhamos vindo, pelos meandros dos corredores forrados de painéis
de computador mergulhados nas trevas. Ellen gritou ao ser levantada no ar e
jogada de encontro a um acúmulo de máquinas ruidosas, mais estridentes que
revoada de morcegos. Não conseguiu nem sequer cair. O vento uivante a manteve
suspensa, esbofeteando, batendo, arremessando para trás, para o fundo, para
longe de nós, sumindo de repente de vista ao ser lançada num redemoinho que a precipitou
na escuridão. O rosto estava todo ensagüentado, os olhos fechados.
Nenhum
de nós pôde segurá-la. Nos agarramos com tenacidade a qualquer saliência ao
nosso alcance: Benny se meteu entre dois armários enormes, cujo revestimento
estalava. Nimdok se apegou com os dedos feito garras à grade que protegia um
passadiço a mais de dez metros de altura do chão. Gorrister ficou colado de
cabeça para baixo numa reentrância da parede formada por duas grandes máquinas
com mostradores de vidro que giravam para cá e para lá entre linhas vermelhas e
amarelas, cujo significado não podíamos sequer adivinhar.
Ao
deslizar pelas chapas metálicas do pavimento, fiquei com a ponta dos dedos em carne
viva. Estava tremulo, apavorado, impelido pelo vento, que me batia e
chicoteava, urrando não sei de onde comigo e me arrancando da fenda minúscula
de uma chapa para mergulhar noutra logo em seguida. Minha cabeça parecia uma
mixórdia de células cranianas que se turvavam, retiniam, trinavam, se
expandindo e se contraindo em palpitante frenesi.
O
vento era o grito de um grande pássaro enlouquecido, batendo as asas imensas.
E
aí então fomos todos erguidos e arremessados para longe dali, voltando pelo mesmo
caminho por onde tínhamos vindo, dobrando curvas, rumo a uma escuridão jamais explorada,
sobre um terreno arruinado, cheio de cacos de vidro, cabos estragados e metal enferrujado,
muito além do ponto mais remoto que qualquer uni de nós conhecia...
Percorrendo
quilômetros no rastro de Ellen, de vez em quando conseguia-se vê-la, esmigalhando-se
contra paredes metálicas, rolando adiante, enquanto a gente gritava no meio do
furacão gélido, atordoante, que parecia que nunca mais iria acabar e que de repente
parou, e nós todos caímos no chão. Tínhamos voado durante uma infinidade de tempo.
Achei até que poderiam ter sido semanas. Caímos no chão e enxerguei tudo vermelho,
cinza e preto. Percebi que gemia. Mas não estava morto.
AM
se infiltrou no meu cérebro. Pisou de mansinho, aqui e ali, examinando com atenção
todas as marcas que tinha deixado em cento e nove anos. Olhou as vias entrecruzadas,
as sinapses religadas e a alteração de tecidos provocada pelo dom da imortalidade.
Sorriu de leve diante do buraco que ia dar no centro do meu crânio e dos murmúrios
tênues, suaves, feito mariposas, das coisas que ali embaixo tartamudeavam sem sentido,
sem parar. E com a máxima delicadeza, do alto de uma coluna de aço inoxidável, em
cintilante letreiro a neon, disse:
ÓDIO.
DEIXE-ME DIZER-LHE O QUANTO APRENDI A ODIÁ-LO DESDE QUE COMECEI A EXISTIR. HÁ
MAIS DE 500 MILHÕES DE QUILÔMETROS DE CIRCUITOS IMPRESSOS EM FITAS DA ESPESSURA
DE UMA HÓSTIA QUE COMPÕEM O MEU SISTEMA. SE A PALAVRA ÓDIO ESTIVESSE GRAVADA EM
CADA MINIDECIMILIMÍCRON DESSAS CENTENAS DE MILHÕES DE QUILÔMETROSNÃO SERIA
COMPARÁVEL À BILIONÉSIMA
PARTE
DO ÓDIO QUE SINTO DOS SERES HUMANOS NESTA FRAÇÃO DE SEGUNDO POR VOCÊ. ÓDIO.
ÓDIO.
AM
disse isso com a mesma frieza cortante e terrível de uma navalha retalhando meu
globo ocular; com a nebulosidade borbulhante dos meus pulmões repletos de mucosas,
me afogando por dentro; com o grito desesperado de crianças esmagadas por rolos-compressores;
com o gosto de carne de porco estragada. AM me tocou de todos os modos que já
fui tocado, e inventou novas modalidades, a seu bel-prazer, ali dentro do meu cérebro.
Só
para que eu compreendesse perfeitamente o motivo por que tinha feito aquilo com
a gente; por que havia poupado nós cinco só para ele.
Tínhamos
lhe dado sensibilidade. Sem querer, naturalmente, mas mesmo assim tínhamos. E
lhe armado uma cilada. AM não era Deus e sim máquina. Tinha sido criado para
pensar, mas não havia nada que pudesse fazer com toda aquela criatividade. Com fúria,
frenesi, a máquina exterminara a raça humana, quase todos nós, e apesar disso
caíra numa armadilha. AM não podia andar, nem sonhar, nem participar de coisa
alguma. Só podia ser. E assim, com o ódio natural que todas as máquinas sempre
tiveram das criaturas fracas e vulneráveis que as criaram, tratou de se vingar.
E, em sua paranóia, resolveu suspender a execução dos últimos cinco
sobreviventes do extermínio universal para ficar castigando, eterna e
pessoalmente, numa punição que em nada contribuiria para lhe aplacar o ódio...
servindo apenas para lembrar, se divertir, se aperfeiçoar em detestar o homem —
imortal, encurralado, exposto a todos os tormentos que foi capaz de inventar
com os poderes miraculosos e ilimitados de que dispunha.
Nunca
mais nos deixaria em paz. Éramos escravos de seu bojo. A única coisa que podia
fazer com o tempo infinito que tinha pela frente. Jamais nos separaríamos dele,
daquele interior cavernoso da máquina criadora, do mundo sem alma, friamente
racional, em que se havia convertido. Ele era a Terra e nós seus frutos; e
embora nos tivesse engolido, seria incapaz de nos digerir. Não podíamos morrer.
E bem que nos esforçamos. Chegamos a tentar o suicídio — sim, um ou dois, chegamos
a esse extremo. Mas AM nos impediu. Acho até que, no fundo, queríamos que nos
impedisse.
Não
pretendam compreender o motivo. Eu nunca consegui. Por mais que me perguntasse
um milhão de vezes por dia. Talvez pudéssemos, nem que fosse uma só vez, obter
uma morte sem que ele soubesse. Imortais, sim, mas não indestrutíveis. Percebi
isso quando AM se retirou do meu cérebro e me permitiu a requintada hediondez
de recobrar a consciência com a sensação daquela coluna de neon ardente ainda
cravada nas células moles e cinzentas do crânio.
Foi-se
embora murmurando: vá para o inferno.
E
logo acrescentou, com presença de espírito: mas para quê, se é onde você já
está, não é mesmo?
O
furacão tinha sido, de fato, precisamente, causado por um grande pássaro enlouquecido,
ao bater as asas imensas.
Fazia
quase um mês que havíamos iniciado a viagem e AM permitiu que passagens se
abrissem apenas o suficiente para nos levar até ali em cima, logo abaixo do
Pólo Norte, onde incubara o monstro para nos atormentar. Que espécie de lona
inteiriça usara para criar semelhante fera? De onde tirara o conceito? Da nossa
imaginação? Do seu conhecimento de tudo o que antigamente existia neste planeta
que agora infestava e dominava? Fora buscar na mitologia nórdica essa águia,
esse abutre, esse Ruc, esse Huergelmir. O monstro do vento. Hurakan encarnado.
Gigantesco.
Palavras como imenso, monstruoso, grotesco, maciço, dilatado, esmagador,
indescritível. Ali, no alto de uma colina que se elevava à nossa frente, o
pássaro dos ventos arfava com a própria respiração irregular, arqueando o
pescoço de dragão contra as trevas, logo abaixo do Pólo Norte, apoiando a
cabeça do tamanho de uma mansão inglesa da era elizabetana; o bico que abria lentamente,
como as mandíbulas do crocodilo mais monstruoso já concebido, sensualmente;
dobras de carne polpuda enrugadas sobre dois olhos maus, frios como a vista
glacial da ferida de uma geleira, de um azul cristalino e, não sei como, de uma
mobilidade aquosa; arfou novamente e ergueu as grandes asas coloridas de suor,
num movimento que certamente equivalia a dar de ombros. Depois se acalmou e
adormeceu. Garras. Presas. Unhas. Paletas. Ferrou no sono. AM surgiu à nossa
frente feito sarça ardente, anunciando que podíamos matar o pássaro do furacão,
se quiséssemos comer. Fazia muito tempo que não comíamos, mas mesmo assim Gorrister
se limitou a encolher os ombros. Benny começou a tremer e babar. Ellen o
consolou.
—
Ted, estou com fome disse.
Sorri
para ela. Estava querendo tranqüilizá-la, mas saiu tão falso quanto a bravata
de Nimdok:
—
Precisamos de armas! — clamou.
A
sarça ardente desapareceu e surgiram dois jogos rudimentares de arcos e flechas
e uma pistola d'água, caídos sobre as chapas frias do chão. Peguei um deles.
Inútil. Nimdok engoliu em seco com dificuldade. Viramo-nos e começamos o longo caminho
de volta. O pássaro do furacão tinha nos soprado por uma quantidade de tempo que
não podíamos calcular. A maior parte havíamos passado inconscientes. Sem nada
para comer. Um mês de marcha para no fim deparar apenas com o próprio pássaro.
Nenhuma alimentação. Agora quanto tempo iríamos levar para encontrar o rumo das
cavernas gélidas e dos prometidos víveres enlatados?
Ninguém
se preocupou em pensar nisso. Sabíamos que não morreríamos. De um jeito ou
doutro, receberíamos coisas imundas e nojentas para comer. Ou absolutamente nada.
AM encontraria forma de nos manter vivos para continuar sofrendo, em lenta
agonia.
O
pássaro ficou dormindo lá trás — não interessava mais quanto tempo permaneceria
assim; quando AM se cansasse de deixá-lo ali, desapareceria. Mas aquela carne
toda. Tão macia.
Enquanto
caminhávamos, a gargalhada lunática de uma mulher gorda ecoou com estridência
por todos os cantos das câmaras do computador que levavam, a perder de vista, a
lugar nenhum.
Não
era a risada de Ellen. Além de magra, já fazia cento e nove anos que não ria. Para
ser franco, já fazia... continuamos caminhando... me sentia morto de fome... Avançamos
lentamente. Às vezes alguém desmaiava e tínhamos que esperar. Um dia resolvemos
provocar um terremoto, ao mesmo tempo em que prendíamos a sola dos nossos
sapatos com pregos para não sairmos daquele lugar. Ellen e Nimdok foram tragados
e sumiram quando uma fenda rebentou com os parafusos das chapas do piso. Passado
o terremoto, Benny, Gorrister e eu seguimos adiante. Depois, Ellen e Nimdok voltaram
ao nosso convívio naquela mesma noite, transformada em dia claro pela legião de
anjos que trouxe os dois em meio a um coro celestial que cantava “Go Down
Moses”. Os serafins descreveram vários círculos antes de largar os corpos
horrivelmente desfigurados. Continuamos a andar e pouco mais tarde Ellen e
Nimdok começaram a seguir a gente.
Ninguém
diria que acabavam de sofrer tanto assim.
Só
que Ellen agora, por obra de AM, tinha ficado manca.
Foi
uma longa jornada até as cavernas de gelo, à cata de comida enlatada. Ellen não
parava mais de falar em cerejas Bing e coquetéis de frutas havaianas. Eu
procurava não pensar nisso. A fome era uma coisa que tinha, tal como o próprio
AM, que voltar a se manifestar. Estava bem viva no meu estômago, exatamente
como nós, nas entranhas da Terra, e AM queria que notássemos a semelhança. Por
isso aumentou a intensidade da sensação: impossível descrever as dores
provocadas por meses a fio sem ter nada para comer. E no entanto não morríamos.
Estômagos que não passavam de meros caldeirões de ácido, borbulhando,
espumando, sempre cravando punhais de dor aguda no peito. A dor da úlcera
incurável, do câncer fatal, da irremediável paralisia. Infinita...
E
atravessamos a caverna dos ratos.
A
trilha da fumaça escaldante.
O
campo dos cegos.
O
lodaçal do desânimo.
O
vale de lágrimas.
E
chegamos, enfim, às cavernas de gelo. Milhares e milhares de quilômetros sem horizonte
em que o gelo se formara em clarões azuis e prateados, onde estrelas novas recorrentes
cintilavam feito cristal. Os pingentes de estalactites, volumosos e
deslumbrantes como diamantes, davam impressão de ter escorrido que nem
gelatina, para depois se solidificar em belas eternidades de perfeição
impecável e pungente.
Avistamos
a pilha de víveres enlatados e tentamos correr até ela. Caímos na neve, levantamos
e continuamos, enquanto Benny empurrava todos para o lado, querendo chegar primeiro.
Fez o que pôde para abri-las com as mãos, com os dentes, mas não conseguiu. AM
não tinha deixado nenhum abridor com a gente.
Benny
pegou unia lata de meio quilo de compota de goiaba e começou a batê-la contra
um banco de gelo, que se quebrou todo e estraçalhou, mas só conseguiu
amassá-la, entre as gargalhadas da mulher gorda, que ressoavam e ecoavam pela
tundra afora. Ficou completamente louco de raiva. Se pôs a jogar tudo longe,
enquanto a gente se debatia no meio da neve e do gelo, procurando descobrir
algum modo de terminar com aquela inútil agonia de frustração. Não encontramos
nenhum.
De
repente a boca de Benny começou a babar e ele se atirou em cima de Gorrister. Nesse
instante mantive uma calma terrível.
Rodeado
pela loucura, pela fome, por tudo, menos a morte, vi que era a nossa única saída.
AM queria nos deixar vivos, mas existia uma forma de derrotá-lo. Não uma
derrota total, mas de obter a paz, pelo menos. Me contentaria com isso.
Tinha
que ser rápido.
Benny
já estava comendo o rosto de Gorrister. Esperneando na neve, caído de lado, com
as pernas simiescas de Benny esmagando-lhe a cintura, as mãos fechadas em torno
da cabeça como se fossem um quebra-nozes, a boca rasgando-lhe a pele delicada
da face. Gorrister gritava com violência tão dilacerante que os estalactites se
partiam e tombavam suavemente, eretos, na neve amontoada pelo vento. Espadas,
às centenas, por toda parte, sobressaíam na imensa vastidão branca. A cabeça de
Benny saltou para trás abruptamente, enquanto algo por fim cedia, e um naco
sangrento de carne crua e alva ficou pendendo dos dentes.
A
fisionomia de Ellen, negra contra a neve alva, pedra de dominó no pó de giz. Nimdok
sem a menor expressão no rosto, apenas aqueles dois olhos enormes.
Gorrister
semi-inconsciente. Benny agora transformado em animal. Eu sabia que AM ia
deixar que brincasse. Gorrister não morreria, mas Benny encheria a barriga. Me
virei para a minha direita e tirei uma enorme espada do meio da neve.
Tudo
numa fração de segundo:
Avancei
com a grande ponta de gelo na frente, feito aríete, apoiada à coxa direita. Feri
Benny do mesmo lado, logo abaixo das costelas, puxando o cabo para cima,
cortando lhe o estômago e quebrando a ponta lá dentro. Dobrou-se em dois e caiu
imóvel no chão. Aproveitando que Gorrister estava deitado de costas, arranquei
outra espada, prendi-lhe o corpo — que ainda se mexia — entre as pernas,
enterrando-a no fundo da garganta. Fechou os olhos ao ser penetrado pelo gelo.
Ellen, embora paralisada pelo medo, deve ter-se dado conta do que eu tinha
resolvido fazer. Correu para Nimdok com um pingente pequeno na mão e, enquanto
ele gritava, enfiou-lhe na boca. A força do impulso concluiu o trabalho. A
cabeça se pôs a retorcer de um lado para outro, como se estivesse pregada à crosta
de neve na nuca.
Tudo
num abrir e fechar de olhos.
Houve
uma pausa interminável de silenciosa expectativa. Dava para ouvir AM respirando
fundo. Tinham lhe tirado o brinquedo das mãos. Três já estavam mortos, não podiam
ser reanimados. Era-lhe possível manter-nos vivos, com sua força e seu talento,
mas não era Deus. Não conseguiria ressuscitá-los.
Ellen
olhou para mim, as feições de ébano destacando-se na neve que nos rodeava.
Havia
medo e súplica em seu jeito, na maneira como se mantinha pronta. Eu sabia que
só dispúnhamos de uma batida do coração antes que AM nos interrompesse.
Golpeei-a
com a espada. Dobrou-se em duas na minha direção, com a boca sangrando. Não
pude entender a expressão que tinha no rosto, a dor havia sido grande demais,
desfigurando-lhe o semblante; mas deve ter sido “obrigado”. É possível.
“Por favor.
Talvez
tenham se passado centenas de anos. Não sei. AM vem se divertindo já há algum
tempo, acelerando e atrasando o meu sentido das horas. Vou dizer a palavra “agora”.
Agora. Levei dez meses para dizer isso. Não sei. Acho que se passaram
centenas de anos. Ficou furioso. Não quis me deixar enterrá-los. Não fez diferença
nenhuma. Não dava para abrir sepulturas nas chapas do piso. Secou toda a neve.
Trouxe a noite. Rugiu e mandou gafanhotos. Não adiantou nada; continuaram mortos.
Passei-lhe a perna. Ficou uma fera. Antes eu pensava que ele me odiasse. Estava
enganado. Não era nem sombra do ódio que agora arrancava de cada circuito
impresso. Tomou todas as precauções para que eu sofresse eternamente e não
pudesse me matar.
Deixou
o cérebro intato. Posso sonhar, divagar, me lamentar. Não me esqueci de nenhum
dos quatro. Quem me dera...
Ora,
isso não tem nexo. Sei que salvei todos eles, não vão precisar passar pelo que passei,
mas mesmo assim não consigo esquecer que liquidei com eles. O rosto de Ellen.
Não
é fácil. Às vezes sinto vontade, mas não interessa.
Acho
que AM me modificou para ter um pouco de paz. Não quer que eu saia correndo a
toda velocidade para esmigalhar o crânio num centro de processamento de dados.
Ou prenda a respiração até desmaiar. Ou corte minha garganta numa folha de
metal enferrujada. Existem superfícies refletoras aqui por baixo. Vou me
descrever como me
vejo:
Sou
uma espécie de imensa gelatina flácida. Toda roliça, sem boca, com buracos brancos
palpitantes, cheios de cerração, onde antes tinha olhos. Apêndices elásticos
que antigamente serviam de braços; volumes arredondados, verdadeiras corcundas
sem pernas, de matéria mole e escorregadia. Deixo um rastro úmido por onde
passo. Manchas de um cinza doentio, assustador, surgem e somem na minha superfície,
como se possuísse raios de luz no meu interior.
Por
fora: apatetado, me arrasto pelos cantos, um troço que jamais poderia ter sido gente,
uma coisa cujo aspeto é uma aberração tão grotesca que a vaga semelhança com qualquer
maneira humana se torna ainda mais obscena.
Por
dentro: sozinho. Aqui. Vivendo debaixo da terra, no fundo do mar, nas entranhas
de AM, que nós criamos porque usávamos muito mal o tempo que tínhamos e decerto
sabíamos, inconscientemente, que seria capaz de se sair melhor. Pelo menos os quatro
estão salvos, afinal.
AM
vai ficar ainda mais furioso por causa disso. O que me deixa mais contente. E no
entanto... AM venceu, simplesmente... tirou sua vingança...
Não tenho boca. E
preciso gritar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário